A Praça da Discórdia - III
A Praça da Discórdia contém em si mesma a Praça da Concórdia.
Em qualquer dos momentos, algo não está bem.
Anti-Praças
Uma Praça é o uso que dela vamos fazendo.
Os espaços abandonados das nossas cidades abundam. Temos de compreender porquê.
Sabemos da gentrificação das zonas mais antigas (- não vamos chamar-lhes lugares centrais, tal como tentámos explicar aqui): o envelhecimento dos habitantes, as rendas por actualizar (que não podem ser, que a sua capacidade económica não lhes permite), os prédios que já suportaram tantas agressividades humanas e ambientais, degradados.
Tornam-se espaços abandonados e vazios: as pessoas que lá continuam, lá continuam porque não têm mais para onde ir; e os que passam por lá, por lá têm que passar - para ir para outro lado.
Tornam-se espaços "desatractivos" (eram / foram, já não são / deixaram de o ser).
As políticas urbanas.
Apercebendo-se destes desequilíbrios, destas - chamadas e identificadas como tal - disfunções urbanas, lá vêm as Instituições, Públicas (qual é o objectivo destas?) ou Privadas (destas já sabemos que é sacar, cedo ou tarde, directa ou indirectamente, algum proveito económico...), tentar inverter a situação.
Fazem-se estudos para identificar as causas do problema.
Uma coisa a que gostamos muito de enunciar e aplicar é:
A VALORIZAÇÃO DOS ESPAÇOS
Calma aí!
Valorização dos espaços??
Então,... deixamos a pobreza (mental e humana) instalar-se nos lugares e depois, quais bons samaritanos, vimos propor medidas e investimentos (nos edifícios, no mobiliário, nas actividades económicas e/ou lúdicas...) para que os espaços voltem a resplandecer de vitalidade?
Humm... parece-me que há aqui mais uma disfuncionalidade.
Na forma como agimos.
Talvez não tenhamos outra, mas acho que há aqui qualquer coisa que não bate certo.
...
Há 2
tendências /
opções /
estratégias /
modelos /
perspectivas
principais
(que talvez correspondam, pouco mais ou menos, às orientações filosófico-políticas que têm atravessado a história das sociedades humanas: conservadora ou progressista, visando o presente ou visando mais o futuro):
As grandes intervenções urbanas, dependendo do poder que conferimos a quem as leva a cabo (é isso a Instituição pierrebourdiana), consistem, portanto, em:
arrasar tudo o que existe e construir de raíz
- apagando os traços da acumulação histórica
ou
construir no que existe, acrescentando e renovando
- mantendo os traços da acumulação histórica
Ao primeiro caso costuma-se associar o poder prepotente (lamentamos a eventual redundância...) e ao segundo um outro poder, digamos que mais moderado, refreado, controlado, com possibilidade de escrutínio.
Foto retirada do blogue Guedelhudos
E assim, como ondas erguendo e destruindo incessantemente, voltamos ao outro lado do mesmo:
A Praça da Concórdia contém em si mesma a Praça da Discórdia.
Em qualquer dos momentos, algo não está bem.
As colossais Praças...
Tiananmen (gigantesca e, sim, com espaço para o Homem, mas apenas para o fazer sentir-se pequeno...), São Pedro (parece que os seus edifícios circundantes cuidam e embalam as massas que lá cabem...), Vermelha (estamos sempre a projectar nela os veículos militares milimetricamente dispostos em posição de força e obediência...)
...mesmo que mais pequenas,
que fazem com tal tamanho?
Fazem uma coisa muito simples:
São marcas do Poder, elas próprias Instituições do Poder: os grandes edifícios, políticos ou religiosos, marcam momentos históricos e apresentam valores que esse mesmo Poder quer fazer perdurar - pelo tempo, pelo espaço, por dentro das leis dentro das quais as pessoas agem e pensam.
Sim, porque aquilo que a Instituição faz é isso mesmo: institui.
Instituir é fazer valer no próprio acto em que se manifesta.
O que se passa aqui, tendo como análise a Praça, é que nela (talvez sobretudo nela) há uma inequívoca
ESPACIALIZAÇÃO DOS VALORES
Mas... quais valores? Isto é... de quem?
Quem comanda?
e,
se há quem comanda,
Quem é comandado?
E é por isso que, da concórdia, submissa ou incorporada temporariamente, e da ordem espacializada emergirá a própria discórdia. Enquanto formos vida.
Porque a instituição é uma forma de violência simbólica.
Aquilo que lá pusermos... - temos de ser nós a pô-lo.
O nome que lhe dermos... - tem de nos dizer muito.
Aquilo em que a transformarmos... - temos de ser nós a transformá-la.
Porque essa violência / violação simbólica é tanto maior quanto menos for assumida pelas pessoas, quanto menos lhes pertencer, quanto menos apropriada o for pelas pessoas.
Pelas pessoas que decidem em consciência.
Pelas pessoas que um dia acordam e percebem que esse Poder não está a servi-las, mas tão-só a servir-se ou a servir tão-só uma minoria.
A minoria que vamos deixando - crentes - que nos represente.
E a vigilância faz lei.
E da lei da vigilância nasce a suspeita de todos contra todos.
Rumo aos combates que urgem.
Não nos obriguem a vir para a rua gritar.
A Praça é o uso que dela vamos deixando fazer, quando não dela vamos fazendo. Nós.
Nós mesmos e só nós.
Por isso, a Praça não utilizada, não valorizada ou temporariamente menosprezada (tal como nas últimas eleições presidenciais, em que a maioria optou pela "não inscrição" joségiliana), é um espelho da vitalidade: da Sociedade, da Democracia e do Homem.
Eu prefiro uma Praça com dimensão humana.
Com árvores e música como vida.
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