Desenho urbano e espaços públicos

Em dois artigos anteriores (aqui e aqui) referimo-nos brevemente a alguns elementos urbanos que ajudam a forjar identidades e caracterizar as praças públicas (no caso de Braga).

Segue-se a primeira parte de um excerto (ponto 3) de um texto de Miquel Martí, "La renovación del espacio público en Barcelona (1979-2003)", retirado da Urbanismo #17 (Revista da Associação dos Urbanistas Portugueses), de Verão de 2004. Nele se aborda essa questão das identidades espaciais, da legibilidade do desenho urbano. São assuntos que se relacionam com a obra de Kevin Lynch "A Imagem da Cidade", que foi livro do mês em Dezembro passado.


3 - Do Desenho dos Espaços Públicos Singulares, Monumentais e Pessoais

Desenhar espaços públicos na cidade compacta existente, com envolventes edificadas consolidadas que não deviam ser substancialmente modificados pela intervenção no espaço público, aparecia nos começos dos anos 80 como um campo particular e autónomo dentro do desenho urbano para o qual não existia em Barcelona uma experiência e um saber acumulados. Os arquitectos que empreenderam o processo de renovação da cidade abordaram estes projectos como se de objectos de desenho se tratasse. Cada espaço público era tratado considerado como uma entidade autónoma que devia ser convertida numa peça única do espaço público, como uma obra marcada com o cunho próprio do seu autor.
Estas abordagens pessoais dos autores coincidiam perfeitamente com a vontade municipal daquela época de monumentalizar a cidade através da nova política dos espaços públicos. Esta ideia de monumentalidade requeria espaços que constituíssem episódios urbanos facilmente reconhecíveis. Os espaços públicos, através do impacto do seu desenho formal, deviam contribuir para que os cidadãos se apropriassem deles e se identificassem com eles. O recurso extensivo às esculturas como elemento central em muitos destes projectos era a expressão mais simples desta monumentalidade, já que rapidamente se incorporavam no imaginário urbano dos seus habitantes. Esta era a concepção cívica do espaço público neste primeiro período: espaços formalmente expressivos, facilmente identificável com a intenção de representar uma esfera pública que os cidadãos pudessem sentir como própria, valiosa e colectiva.
Estes desenhos monumentais e pessoais originaram lugares estilizados, introvertidos e não raras vezes fragmentados, que exploravam uma ampla diversidade de linguagens formais, reflexo dos estilos pessoais dos seus autores (fig. 1).

Fig. 1 - La Rambla del Carmel (Manuel Ribas Piera, 1985)
(Imagem e legenda retiradas do artigo, p.14 )

Os espaços eram estilizados, padeciam de um excesso de desenho, devido à grande quantidade de recursos expressivos utilizados: introdução de vários níveis topográficos, criação de ambientes diversos (espaços minerais [ou seja, a existência de rochas ou água), áreas de jogos, jardins...), implantação de esculturas, e sobretudo, um grande número de elementos urbanos (candeeiros, bancos, fontes...). Os espaços eram também estilizados pelo excesso de desenho na formalização dos diversos elementos empregues. A Rambla del Carmel, propondo "desenhos geométricos no pavimento, candeeiros decorativos, bancos e colunas desenhadas para o efeito, uniões simbólicas como o prolongamento de algumas malhas urbanas, muros de pedra trabalhados, uma ponte veneziana e várias esculturas, dois monumentos, uma fonte semicircular e um hemiciclo informal", constitui praticamente uma caricatura de um espaço público estilizado. Noutros casos, o excesso de desenho leva directamente a propor a introdução de estruturas arquitectónicas no espaço, como pequenas pontes historicistas, arcadas e pórticos, coretos, jardins... incorporados em muitos espaços, como na proposta de Óscar Tusquets de 1982 para a Avenida da Catedral, que acabou por não ir avante.

Certamente, a necessidade de responder a uma grande quantidade de necessidades funcionais depois de décadas de abandono do espaço público (espaços para as crianças brincarem, praças para eventos colectivos, zonas estáticas para idosos, zonas de contacto com a natureza...) levou ao excesso de desenho de alguns dos primeiros espaços renovados, que incorporaram muitos mais usos que os que a sua escala e dimensão podiam permitir. Mas em sum, a estilização foi o resultado da aproximação monumental e pessoal ao projecto de espaço público. Além disso, devido a este excesso de desenho e aos discursos pessoais que sustentavam os projectos (desde o desejo de reinterpretar elementos da arquitectura clássica até todo o tipo de temáticas de inspiração paisagista), os novos espaços públicos tendiam a competir com a sua envolvente urbana (com a envolvente edificada, mas também com os seus usos e actividades), enquanto expressão de significados e imagens.

São estas características de autonomia e falta de contextualidade dos espaços que lhes conferem o seu carácter introvertido: os desenhos copiam-se a si próprios, ignorando a envolvente urbana. Frequentemente esta introversão traduz-se no estabelecimento de limites artificiais entra o espaço renovado e os seus arredores, geralmente através do jogo com diferenças de nível ou modificações topográficas. Esta busca da autonomia espacial, e às vezes do isolamento, aumenta envolventes desconfigurados e pouco qualificados de muitos bairros populares da primeira periferia.

A praça Sóller, construindo uma plataforma mineral elevada rodeada por um pórtico, é um paradigma destes espaços introvertidos, neste caso erigindo limites arquitectónicos. Noutros espaços também surgem limites internos, por vezes não pretendidos. O desejo de combinar num mesmo lugar diferentes usos e ambientes conduziu frequentemente a justaposições que fragmentaram o espaço público. A mesma praça Sóller divide-se num espaço plano mineral e num parque inclinado com vegetação abundante, criando um espaço fragmentado em duas partes únicas (figs. 2 e 3).

Figs 2 e 3 - Plaza Sóller (J.M Julià, J.L. Delgado, A. Arriola e C. Ribas, 1981)
(Imagens e legenda retiradas do artigo, p.16)

Os espaços públicos criados na primeira parte da década de oitenta podem parecer muito díspares devido às múltiplas linguagens formais que usam, dependendo de cada autor: desde um espaço eclético como o Moll de la Fusta inspirado em diferentes períodos históricos, no qual se combinam arcadas de ladrilho, mobiliário urbano neo-gaudiano, e pontes pós-modernas, até espaços baseados em tradições estilísticas tão diversas como o racionalismo arquitectónico na praça dos Països Catalans ou o Land-Art no Parc de la Estació Nord.

No entanto, nas múltiplas situações com as quais os projectistas se confrontam nestes primeiros anos, inicio-se uma exploração das possibilidades e das ferramentas dos projectos do espaço público: as linguagens minimalistas ofereciam alternativas aos projectos estilizados, as intervenções em envolventes edificadas altamente qualificadas (como nos "cascos" antigos como o da Gràcia), exploraram meios para articular os espaços em vez de os isolar, enquanto que a transformação de algumas ruas com diferenças de cota pré-existentes (como na Via Julia) mostraram possibilidades não de criar limites mas de os integrar. É sobre a base destas experiências que a cultura do espaço público em Barcelona estava pronta para evoluir e se distanciar do projecto do espaço público concebido como objecto de desenho.


Tradução do Castelhano por Eduardo F.

O ponto 4 (a segunda parte do "estrato" que nos propusemos trazer aqui) demonstra a importância do mobiliário urbano para, como diz Miquel Martí, a "transparência dos espaços públicos". Daqui a uns dias poderão lê-la aqui, no Georden.

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