Desenho urbano e espaços públicos (II)

Eis a segunda parte (ponto 4) do excerto do artigo de Miquel Martí "La renovación del espacio público en Barcelona (1979-2003)", retirado da Urbanismo #17 (Revista da Associação dos Urbanistas Portugueses), de Verão de 2004.

4 - ... Para espaços públicos transparentes e contextuais.

Em 1987, quando a renovação urbanística de Barcelona começou a centrar-se nas grandes obras do período olímpico, o Servicio de Proyectos Urbanos (SPU), criado em 1980 com o fito de implementar os projectos de espaços públicos, encetou também uma nova fase. A partir daquele momento, todos os projectos de espaços públicos seriam desenhados por arquitectos pertencentes ao SPU, quando até 1986, a metade dos projectos, especialmente os dos espaços mais importantes, tinham sido entregues a arquitectos externos de reconhedido prestígio. Com esta internalização do processo de desenho pretendia-se forjar uma cultura do espaço público a partir das experiências e explorações dos seis primeiros anos. O resultado foi uma série de espaços projectados em finais dos anos oitenta e princípios dos noventa baseados num plano horizontal unitário e totalmente legível, e um trabalho meticuloso com os elementos urbanos, meticuloso no número de elementos, no desenho de cada um deles e na sua implementação.

A Avinguda de la Catedral foi construída como protótipo dos novos projectos. Colocou-se um pavimento de pedra completamente contínuo ao longo e a toda a largura do espaço, até aos limites das fachadas que o definem. Ainda que os carros tenham acesso a certas partes da praça (para aceder ao parque subterrâneo ou para cargas e descargas), todos os desníveis dos passeios pré-existentes foram suprimidos, criando um plano horizontal integrado onde os peões têm total prioridade. Os elementos urbanos foram reduzidos ao mínimo: um alinhamento de árvores e candeeiros, alguns bancos e os acessos ao parque de estacionamento.
A junção destes elementos constitui uma parte essencial do projecto: todos estão ordenados segundo uma mesmo alinhamento paralelo às fachadas, diferenciando um espaço linear vinculado ao comércio de planta baixa dos edifícios residenciais, de grande espaço livre, unitário e aberto às edificações administrativas e institucionais.
Por último, o desenho dos elemntos urbanos é fundamental. Nos desenhos personalistas dos anos oitenta, cada projectista criava os elementos que ia utilizar, que em muitos casos ficavam estilizados para reforçar a sua imagem visual. Em 1989 criou-se uma Unidade de Elementos Urbanos (UEU) com o objectivo de desenhar elementos minimalistas e estandardizá-los. Os acessos ao estacionamento subterrâneo da Avenida da Catedral, uma estrutura de vidro que integra as escadas e os elevadores, e transparente o suficiente para permitir a visão para o outro lado, é um exemplo claro deste desejo minimalista de elementos urbanos que passem praticamente despercebidos.

Neste sentido, a primeira característica dos novos espaços é a sua transparência. Ao contrário dos projectos do primeiro período, que tentavam focar a percepção em si mesmos, os novos espaços centram a atenção na envolvente construída, e antes de tudo, nos usos e actividades que aí se desenvolvem. Já não aspiram a ser espaços públicos monumentais a partir da sua configuração do plano horizontal. São espaços desenhados para oferecer cenários apropriados à vida da cidade, tanto para a vida do quotidiano, como para os eventos colectivos singulares.
O laconismo formal dos espaços convida a cidade e os cidadãos a tomarem a palavra. Isto significa uma mudança importante na concepção da dimensão cívica dos espaços públicos, na reflexão sobre como eles podem constituir uma expressão da esfera pública.
Em vez de propor formas facilmente identificáveis que representem em si próprias o âmbito público, os novos espaços oferecem entornos legíveis aptos a gerar experiências de diversidade social de espaços públicos inclusivos, uma manifestação tangível da esfera pública contemporânea. Os espaços públicos transparentes estão concebidos para potenciar encontros e interacções, a vivência cívica de ver e ser visto, a experiência da convivência na diversidade.


Foto Eduardo F. - Almeirim, 24.10.2007
Ligação no GEOramio
A foto retrata uma das muitas ruas compridas (neste caso, a Rua do Brasil), e paralelas, de Almeirim. Note-se a diferença do piso, godos quartzíticos, quando entramos nestas ruas. O uso maioritariamente residencial talvez não seja alheio a esta tentativa de distinção (apesar de criar mais ruído quando se circula de automóvel por este piso, é um pavimento que convida / mais adequado a velocidades mais reduzidas)

Em segundo lugar, estes espaços públicos transparentes mudam também a forma como os projectistas concebem o seu desenho. A criatividade pessoal aplica-se não ao desenho de formas expressivas, mas à selecção e combinação subtil dos elementos. Não se trata de desenhar um objecto formal, mas de jogar com uma linguagem de elementos urbanos simples (incluindo pavimentos, mobiliário urbano e elementos vegetais), que podem até ser padronizados. A criatividade centra-se na sintaxe desta linguagem. Ao mesmo tempo, a transparência dos espaços contribui para a sua abertura ao entorno urbano. Desta maneira, os projectos sintáticos são muito mais contextuais. Inspiram-se mais nas condições locais, em vez de se basearem em imaginários e temáticas pessoais.

Se pegamos no exemplo da Avenida da Catedral, o alinhamento dos elementos urbanos está localizado tendo em conta as diferenças formais e funcionais da fachada residencial, os bancos concentram-se exclusivamente em frente à catedral e aplica-se um trabalho subtil ao pavimento. A orientação das lajes de pedra muda no antigo limite da pequena Plaça Nova, que desapareceu quando parte dos edifícios que ocupavam o actual espaço da avenida foram destruídos durante a Guerra Civil Espanhola. Através desta mudança praticamente imperceptível, o espaço linear dinâmico que liga o Eixample, a extensão do século XIX, com a cidade medieval, distingue-se do espaço muito mais estático e contemplativo que se extende à frente da catedral. Quando se entra no antigo recinto da cidade romana, o tipo de lajes mantém-se, mas o material muda para indicar esta mudança do percurso histórico. Da mesma forma, o pavimento de pedra é substituído por relva para pôr a sua singularidade em relevo. O diálogo com a envolvente urbana oferece ao projectista tantas ou mais possibilidades criativas que as permitidas pela inculcação de uma marca ou estilo pessoais.

(...)

Tradução do Castelhano por Eduardo F.

Penso que no texto fica elucidado o papel dos pormenores na percepção e apropriação dos espaços públicos. Criação de uma imagem identificável, sim. Mas relacionando-a com a envolvente, com os seus usos e actividades. A fragmentação é, portanto e seguindo este raciocínio, sinal de desapropriação: o carácter museológico dos centros de muitas cidades europeias (com restrições de usos, e as leis do mercado a remarem em competição) afasta-os da fonte de vida, que são os seus habitantes.

Este é um assunto a que voltaremos em breve.

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