Alegoria do Património, por Françoise Choay (3/3)
“Nós aprendemos a violência destruidora das guerras modernas e dos actos
de negócio. Ignoramos que no espaço de algumas décadas a espécie humana
chegará, pela sua própria prática conservatória, a conseguir as destruições que
teriam em tempos exigido séculos.” (p. 247)
E, uma vez mais, paradoxalmente mas com causas identificáveis,
o culto do património arquitectónico resulta em degradação e, acima de tudo,
esvaziamento de sentido:
“O condicionamento
sofrido pelo património urbano histórico tendo em vista o seu consumo cultural,
bem como a sua disputa pelo mercado imobiliário de prestígio, tende a excluir
dele as populações locais ou não privilegiadas e, com elas, as suas actividades
tradicionais e modestamente quotidianas.” (p. 241)
Nisto se antevê uma consequência, e que já
identificáramos aqui no Georden:
“Os termos cidade,
urbano (substantivo e adjectivo) e urbanismo perderam o seu sentido original. Quaisquer
que sejam as nostalgias de uns e os álibis de outros, entrámos na «era
pós-cidades». A urbanização propaga-se de acordo com as linhas de força
traçadas pelas redes de grandes equipamentos. Melhor do que a rurbanização, inventada nos anos setenta para definir a
metamorfose da paisagem rural, o termo italiano periferização faz compreender a dinâmica do processo que
tende actualmente a desfigurar as cidades e a uniformizar os territórios.”
(p. 250)
À medida que o livro se aproxima da conclusão é que ele se
torna mais interessante: por um lado, as cidades comunicacionais, são fluidas e
reticulares – tal é o imperativo maior em vigor, o económico. A rapidez, a
facilidade, a acessibilidade. Dito por outras palavras, a imaterialidade e o
desenraizamento, a falta de espaços de pausa, reflexão e diferença são a nova
linguagem que emerge e fala nesta nova pobre paisagem urbana, cada vez mais
desumana, cada vez mais robótica, binária, desrealizante.
“As próteses que nos
libertam do domínio local, resgatam-nos simultaneamente da duração para nos
instalar na instantaneidade. O tempo orgânico da recordação, do cálculo, do
questionar, da espera, da aproximação e do rodeio é recusado. Como também, de
outra forma, o tempo cósmico das estações é escarnecido pelo avião dos
transportes aéreos, que salta de um hemisfério terrestre para outro, quer se
trate de despejar fluxos de turistas em praias ou fluxos de legumes em
mercados.” (p. 255)
Como factores desta “liquidez”, as próteses da comunicação
descorporizam a nossa relação com o local, tornado assim crescentemente
indistinguível de um outro. Uma fábrica de não-lugares e de periferias cada vez
maiores e sem centro algum. É essa familiaridade internacionalista que as
grandes cadeias adoptam nos seus aspectos, ambientes e apresentação, para que
ninguém estranhe e todos se sintam em casa, jamais tendo de recomeçar a
estabelecer novas relações com o local. O que sucede, então, é o progressivo
afastamento de todos os lugares por parte de quem tem de os usar. E, como canta
Raimon, “quem perde as origens, perde identidade.”
O funcionamento em rede e seus fluxos (fluidos, energias,
transportes, informação) permite “a
libertação dos ancestrais constrangimentos espaciais (geológicos, geográficos,
topográficos…) que determinavam a localização, a implantação e a forma dos
estabelecimentos humanos. Ao promoverem um espaço isótropo, eles [as redes
e os fluxos] tanto uma urbanização difusa
e a rurbanização, como a formação de áreas metropolitanas indistintas,
aglomerações densas, de periferias concêntricas.”
Os edifícios e monumentos alvo do nosso culto perdem assim
relação de contexto. Vejam o Blow Up (1967), do Antonioni, que, como grande
filósofo do olhar, já levantava essa questão. Deixaram eles de portar ou
transmitir, espelhar, qualquer ideia de relação e memória. Já pouco podem
dizer-nos sobre nós próprios e a nossa história.
Todos os “testemunhos de um passado recente sempre mais
próximo foram integrados”, indistintamente, “no corpo patrimonial. Edifícios-manifesto do movimento modernista (…),
realizações espectaculares da engenharia
de construção, até aos falhanços da habitação social… estão associados e
assimilados aos monumentos e aos tecidos históricos, confundidos com eles. Esta
amálgama de objectos ligados a práticas e a lógicas diferentes, e cuja
heterogeneidade é camuflada sob a denominação comum e falaciosa de património, dá-nos de nós próprios, sob o aspecto das
nossas realizações edificadas, uma imagem global, una e inteira, que oculta a
fractura provocada pela mutação em curso e lhe conjura o trauma pela afirmação
de uma identidade intacta.” (p. 258)
Significa isto que quanto mais destruímos as singularidades,
mais nos agarramos à tábua de salvação do passado, que – pensamos – já não
muda. Mas que vai perdendo o sentido. As primeiras grandes destruições foram as
trazidas pela revolução industrial e as guerras. As modernas destruições são
mais subtis, conceptuais, mas nem por isso desprovidas da sua relação com o
espaço físico:
“Quando não
construímos mais tais monumentos [os que são fundados mais na beleza que na
funcionalidade] e quando abandonamos os
modos articulados tradicionais de edificar, somos confrontados com a perda de
poder sobre o tempo orgânico, que esses artefactos nos entregavam por via da
mediação do nosso corpo. Esse poder, essa visão ancestral com a duração, é
desde então objecto de um desejo feroz e insaciável, vivido como ausência e
como falta. Essa ausência e essa falta são intoleráveis e o património
pré-industrial designaria a chave perdida, cuja imago patrimonial serviria simbolicamente para combater o vazio.” (p.
261)
“À oposição entre
construir articulado e contextualizado e construção reticulada das redes
técnicas, corresponde a oposição entre as línguas tradicionais da diferença e a
língua dos técnicos (…). Assim, a supressão em curso dessa dimensão
antropológica que é a competência de edificar é, sem dúvida, o acontecimento
traumático de que a cultura do património nos serve para conjurar e ocultar.”
Em jeito de conclusão optimista, postulamos que talvez nos reste
a hipótese de numa tal homogeneização perdermos por completo o passado e a
falácia do culto do património que ajudou a que chegássemos a este sem-sentido.
Um bico-de-obra, criar memória a partir do vazio…
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