Crónica rente à estrada

Dizem que a chuva quando cai é para todos.
Só que.
Dizem que o sol quando nasce é para todos.
Só que.

(Artur Portela (filho), falta-me o teu engenho, mas a forma destas quatro frases é uma homenagem que aqui te presto).

Onde é que existe realmente Democracia?
Ou seja, um sistema onde todos sejam tratados por igual?

Vem isto a propósito das desigualdades que, mesmo na estrada, se verificam.
É que há regras para se andar na estrada e conviver com os seus utilizadores.
Para o fim último do código da estrada que é, no fundo, a fluidez de trânsito.

Mas também nas estradas, mesmo com regras a serem cumpridas, existem desigualdades de base. Porque uns, pela desigualdade económica, podem poluir mais e ter os seus pópós a arranhar o asfalto com a sua borracha vulcanizada. De modo que uns chegam primeiro que outros ao destino.

Sim, e depois?

Nada.
Era só uma contestação.
E uma constatação.


Mas afinal, quantos lugares onde jogávamos à bola quando éramos pequenos se perderam nesta terra?

"A estrada é nossa!"

- teríamos dito nós, armados já de liberdade precoce e ingénua.
E diríamos também, apequenando-nos imediatamente a seguir:

"Rua daqui!"

A vulgarização do automóvel (a vulgarização é como o lixo: acompanha-a a desvalorização) por publicidades, impingimentos societais e pretensos modos de vida modernos (claro que são modernos, mas, a questão é, até quando ainda fará sentido falar em moderno? Não temos já anos suficientes de modernidade para que o termo tenha perdido o sentido?) veio roubar-nos os pés descalços que pisavam a areia ou um asfalto manhoso que dava para a encomenda de então.

Se queres lá pôr o pézinho, fá-lo rápido, e de preferência, na perpendicular (a recta que te exigem). Por uma passadeira, se possível. Que fora dela o infractor és sempre tu.
Pois já se avizinham os velozes carros que sempre chegam primeiro ao destino. Com esses, o susto do perigo nos estuga o passo. Dos outros, que como as velhas Famel parecem fazer um ruído desproporcional ao andamento, até podemos troçar, como quem vai de muletas, para impaciência do automobilista, parado à nossa frente, de motor ligado e em suspenso.

(Acabo de ver na TVI que os carros eléctricos estarão, em Portugal, e se bem o entendi, isentos de imposto automóvel. E que a frota do Estado terá, até 2012, 20% de veículos assim movidos. E que o Estado vai financiar os primeiros 5 mil veículos, ou todos os veículos vendidos até ao fim de 2012. Isto, mais a poupança no combustível, mais o dinheiro ganho no abate do veículo antigo.... humm... não é estímulo suficiente? A generalização de painéis solares também teve que ter um início...).

Quando dormíamos,
no horário da merenda,
ou quando estávamos na escola,
ou quando íamos passear,
ou tomar banho no rio,
...
os carros podiam passar à vontade.
Fossem eles carros de bois ou carros motorizados.


Agora as estradas são só dos "corpos" com capacidade de atropelar e provocar acidentes que às vezes são mortais.
Como numa questão de décadas se alterou o uso da estrada.
Como numa questão de décadas mudaram os seus frequentadores.

(Quando o uso é mais "local" as estradas ainda não têm o estatuto "internacional": correm o risco de se manterem na "classe inferior" que é dada pela designação "Rua".*
Tal como o cartaz da foto de Outubro no-lo indica.
Pior que isso só ruela, cangosta, carreiro.
Às A-E's, IPs, Circulares, internas e externas, ninguém lhes chega.

Outra forma de despromoção, ou de desfavorecimento, é o piso: alcatrão, macadame, areia, terra batida, empedrado ou "paralelipípedado", quando não, como em muitas das grandes cicatrizes da Amazónia, estradas de lama... a água mal distribuída e fora da vegetação que vamos rarefazendo...)









Sabugal - Eduardo F. 25.04.2008

Como dantes usávamos ruas como hoje alguns rios que atravessam cidades: como escoadouros das nossas águas mal-sãs, vulgo esgotos.
Como hoje eles vão tapados e os pézinhos "embotados" podem voltar limpos para casa.
(É tão grande a solidão de um asfalto, que tão mal conhece a pele de uma gata borralheira...)

...
Como numa questão décadas desta tão temporã industrializo-europeização esses utentes, em número crescente, fizeram multiplicar a cobertura negra e suja (e pensar que há sabonetes de petróleo... Uma poça de água da chuva estagnada numa estrada mal nivelada tem água envenenada. Que depois vai pelo escoadouro. Sem separação necessária, sem discernimento, misturar-se com todas as outras águas, sãs ou menos sãs.) neste país.
Nesta Terra.

Nesta terra impermeabilizada e à sede.
Nesta terra a afogar-se lentamente e em água imprópria.
(água a mais mata na mesma...)

(E de quem é esta terra? De quem é a cidade? Há dias pensei que a cidade voltará, paradoxalmente, a ser nossa quando deixarmos de viver nela. Não tenho explicação para este pensamento. Nem ma peçam. O que me parece é que a cidade tem sido muito pouco de quem nela habita.)

Assim sendo, com mais este trilho aberto, continuamos a fazer-nos a pergunta:

De quem são estradas?
São públicas?
São privadas?
Não sabemos?


(Para "des-sabermos menos" participem no inquérito ali ao lado esquerdo.
Comentários, aqui ou ali, são ainda mais bem-vindos.)


*Sobre estas questões de rua um dia voltaremos cá para vos trazer um livrito.

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