A Ameaça dos Livros

Setembro de 1966

Porquê ler este livro e não outro?
Porquê ler Namora e não Pratolini? Porquê ler Cesariny e não Breton? Porquê ler Margarido e não Robbe-Grillet?

A solução parece fácil. É lê-los a todos. E, depois, recusá-los ou aceitá-los. Só que - há muitos livros e pouco tempo para os ler.
E se ler é essencial, se ler os livros-chave é indispensável - a escolha pode ser, muitas vezes é, dramática.

O livro é elemento-base da cultura. A cultura estrutura e dinamiza o indivíduo. Logo, a escolha de um livro, de um autor, pode estabelecer a trajectória desse indivíduo, marcar-lhe o carácter, pautar-lhe o comportamento. Somos, também, os livros que lemos.

O livro que se lê é aquilo que é e, também, a recusa de outro livro. Lemos este e não aquele livro. Não aquele. A leitura de Faulkner pode eliminar a possibilidade da leitura de Steinbeck. Possivelmente, lê-se Durrell e não se lê Cholokov. Por se ler Thomas Mann não se lê Régio. E quem leu, ou viu, Beckett, não leu, nem viu, Santareno. Ou vice-versa. Porque não pôde. Porque não quis.

Ler este livro é recusar aquele livro. Aceita-se este livro e recusa-se aquele livro. Provisoriamente. Às vezes, definitivamente. Aceita-se este livro, considera-se este livro. Porque, se ler um livro não representa adesão à sua estética, à sua ética, à sua filosofia - é, ao menos, promoção desse livro, desse título, desse autor, inserção desse livro no nosso tempo, na área da nossa atenção, no âmbito da nossa crítica.

Ler, com certeza, sempre - mas ler com uma exigência cada vez maior. Ter respeito pelo livro, só porque é livro, é pura ingenuidade. Há muito mais livros maus que livros bons. É necessário ao livro, ele próprio, ter um prestígio fabuloso para suportar a mediocridade da maioria dos escritores. A generosidade e a complacência do leitor que lê tudo quanto lhe cai, composto e brochado, debaixo dos olhos, são verdadeiramente suicidas. A cultura de um indivíduo mede-se, também, pela lista dos livros que se recusou a ler.

A dificuldade da escolha não se resolve, é claro, na leitura da badana. Nem na leitura da coluna de crítica. A badana é publicitária - logo, profissionalmente entusiasta. A coluna de crítica é impressionista - logo, profissionalmente inepta.

Acrescenta-se que a edição está organizada para nos provar, a nós, ao mercado, a alta qualidade de todo e qualquer livro. É um complot. Um complot destinado a vender-nos os livros - todos. Os que queremos e os que não queremos. Daí a necessidade da resistência. Resistência feita de critério, de lucidez.

É urgente especializar a leitura. Se não temos, sequer, tempo para ler os livros-base - não faz sentido a curiosidade e a tolerância. Temos tudo a perder. Escrever um livro, ocupar trezentas páginas de corpo sete, é, talvez, um trabalho esgotante. Mas esse esforço pode não merecer o nosso interesse. Ponson du Terrail, por exemplo, deve ter passado anos a produzir o seu Rocambole. O escritor é raro. Isso, porém, não chega. Se há muito mais leitores que escritores, também há muito mais escritores maus do que escritores bons. A condição do escritor não é, por si só, imunidade. Não é o acto de escrever mas o acto de produzir qualidade que privilegia.

Um bom leitor é, sempre, melhor que um mau escritor. E a verdade é que, enquanto aumenta o número de bons leitores - está a aumentar o número de maus escritores.

Ler é uma actividade criativa. Há livros que, lidos, são melhores do que são - escritos. De qualquer maneira, são sempre diferentes, são outros. Fechado, o livro não é - completamente. É, potencialmente. É, em suspenso. A leitura dinamiza-o. O leitor põe o livro a funcionar. A responsabilidade do leitor é enorme. Pode acontecer que "Guerra e Paz" seja, lida por este leitor, um mau livro. Há bons livros que, lidos nos momentos errados, são péssimos. Se ler um livro é, também, escrevê-lo, o livro que se lê, como se lê, pertence-nos, e os livros que se lêem, como se lêem, são - a nossa obra. Assim, também, assume-se a responsabilidade pelo livro que se lê.

Como o escritor, o leitor projecta-se, define-se nas leituras que faz. É-se a leitura que se faz, da maneira como se faz. Ler um mau livro é, em parte, sê-lo. Ler ou não ler este ou aquele livro é extremamente importante. O escritor é responsável pelo livro - e o leitor também. Daí a gravidade da aceitação e da recusa. É dizer não. É dizer não, quase sempre. E, às vezes, sim. Submeter o livro é exigência da qualidade, da necessidade, da modernidade. Só podemos ler os livros de que temos necessidade absoluta. É ler, primeiro, já, Kafka, Joyce, Faulkner, Henry Miller, Durrell, Genet. Quanto tempo demora ler Faulkner? Um tempo confortavelmente longo.

Os livros bons são a nossa muralha contra os livros maus. Esses estão a cercar-nos. Estão a ameaçar-nos. Estão a destruir a própria cultura.


Artur Portela (filho)
in "A Funda - 1º Volume"
Moraes Editores, 1ª edição, 1972, Lisboa, pp.205-207

Comentários

susemad disse…
Ao ler esta crónica lembrei-me logo do livro "Se numa noite de inverno um viajante", de Italo Calvino, que foi escrito como forma de incentivo à leitura. Logo nas primeiras páginas, o autor começa por separar os livros por diversas categorias:

«Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito... Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados... Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, (…) e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido.»

E a verdade é mesmo essa! Nós leitores temos de ser cada vez mais exigentes e selectivos nos livros que escolhemos para o nosso crescimento intelectual.
Livros há muitos e escritores cada vez mais. Pena a qualidade dos novos escritores de hoje deixarem muito a desejar. Contam-se pelos dedos os nomes dos jovens escritores portugueses que vale a pena descobrir a sua escrita.
Ler é sem dúvida importante, mas a verdade é que também somos o reflexo daquilo que lemos, por isso há que saber ler!

Boas leituras! :)
Edward Soja disse…
É mesmo assim.
Nada a acrescentar às sábias palavras do Portela.
:)

Obrigado pela visita.
:)

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