Coimbra - No centro da vanguarda

Clique para aumentar Coimbra, bem no centro do país. Capital do Reino de 1139 a 1260, com seus conventos, seus mosteiros e igrejas. Cidade húmida, com suas cheias recorrentes e suas tragédias, com o seu Mondego e a sua alta, com grandes edifícios e a sua velha universidade. Ambos, rio e universidade, importantes factores do seu crescimento económico e demográfico.



Clique para aumentar Sua orografia característica, suas ruas envelhecidas e suas casas, esguias, cortadas e em bicos de pés, assemelham-se, por vezes, a campos de lapiás, frequentes na morfologia cársica. O carácter declivoso do terreno parece atribuir à Universidade - localizada bem no alto, erguendo-se, heráldica e monumental, ao serviço do saber e do conhecimento - um estatuto de independência e controlo sobre tudo o resto.

Qual a importância da Universidade para a vanguarda cultural e política do Portugal do Séc. XX? Muita. A resposta choca sempre com o facto de Lisboa ser a capital. Traçamos uma breve resenha através da janela que é a música popular, interessantíssimo e muitas vezes subvalorizado meio de se conhecer o tempo e o espaço.

O fado de Coimbra, expressão indissociável da cidade e dos estudantes, é o primeiro sinal de enriquecimento cultural das gentes e da vida que a habitaram. O contínuo alargamento do ensino que se verificou ao longo do século passado trouxe o afluir de jovens de várias partes do país. Desse país isolado e atrasado, em mentalidade e em infra-estruturas.

Diversos foram os nomes e os contributos para o
evoluir da canção coimbrã. Edmundo Bettencourt, por exemplo, grande figura ligada ao meio literário, que marcou muito os anos 20, era natural do Funchal. Fernando Machado Soares, o autor da imortal "Coimbra", veio dos Açores. António Portugal e o seu estilo único e revolucionário de tocar a guitarra portuguesa nem era sequer das fronteiras que hoje temos (nasceu na República Centro-Africana). Já para não falar dos centrais José Afonso, aveireinse, e Adriano Correia de Oliveira, nascido no Porto, mas de uma família de Avintes (Vila Nova de Gaia).
Outros nomes incontornáveis eram, esses sim, naturais de Coimbra. É o caso de Artur e seu filho Carlos Paredes, por quem a música portuguesa nunca mais foi a mesma. Também Luís Goes, o doutor "barítono", é natural da cidade do Mondego.

Muitos apontam a campanha do General Humberto Delgado nas presidenciais de 1958 como o "despertar" para a política. E isso foi um acontecimento que abalou consciências. Fruto das contribuições dos estudantes, com as suas tradições e hábitos culturais, o fado de Coimbra ganhara um carácter etnográfico, assimilando influências e vivências. O confronto de realidades, do país desconhecido e pobre, a coexistência da diversidade abriu horizontes e mentalidades. Assim, como continuar a cantar os amores e fados velhinhos quando pessoas eram presas e torturadas, com tanta emigração?

O fado (de Lisboa, entenda-se) tinha sido transformado em "canção nacional" pelos serviços propagandistas do regime fascismo, dado carácter inofensivo da sua temática. A década de 60, década da mudança em muitos aspectos e países, vai ver emergir um novo movimento, nascido do fado de Coimbra. Ao mesmo tempo que lá fora se ia afirmando a canção de protesto (Dylan, Guthrie, Seeger, Ochs... (EUA), Brel, Brassens (França), Ibañez, Raimon (Espanha), cá, neste país auto-ostracizado e "orgulhosamente só" o movimento da balada vai fazer-se de dentro, completamente à margem da "moda" internacional.

A fraude eleitoral de 58, o rebentar dos movimentos de libertação em África, a ameaça da "partida" para o Ultramar pelos jovens estudantes universitários, entre outros factores, agudizaram a oposição ao regime. As manifestações estudantis em Coimbra, e em Lisboa foram responsáveis pelo germinar de algumas sementes artísticas.

Com muita força e pouca ajuda para fazer algo diferente, o chamado "novo cinema" português ficou marcado pelo filme "Verdes Anos", de Paulo Rocha, e pela música da banda-sonora, da autoria de Carlos Paredes. A história da pobreza e das migrações internas para a cidade, em busca de melhores condições de vida. Estávamos em 62, e a guitarra de Paredes emocionava-nos. Tocava-nos.

Um outro marco foi a ruptura do fado de Coimbra, através de toda uma nova abordagem estilística e estética. Já em 1960, com "Balada do Outono", havia sinais inequívocos dessa pequena grande revolução. O responsável (mas não único) era aquele que veio a tornar-se no maior renovador, criador e cantor de música popular portuguesa: José Afonso.


A canção deixava de relatar poemas inócuos e indiferentes à situação em que se viva. São de após a crise académica os discos "Baladas de Coimbra", de José Afonso, e "Trova do Vento que Passa", de Adriano. Uma nova mensagem, unindo os estudantes e, por arrastamento, todo um povo amordaçado. O primeiro foi alvo da censura e obrigado a uma segunda edição, em que a canção "problemática" apareceu sem a letra. Tratava-se de "Os Vampiros", canção actualíssima. O segundo continha o tema-título, com poema de Manuel Alegre, e tornou-se um verdadeiro hino de resistência à ditadura.


Foi através das serenatas, dos convívios nas Repúblicas, a cantar ao luar, nas escadas monumentais, pela noite fora, até ser dia, e fruto de uma profunda convivência com o mundo que o rodeava que um novo modo de cantar alterou o panorama da música popular portuguesa. Outras canções e outros cantores vieram também alimentar e desenvolver essa chama. Terminada a sua fase académica, José Afonso partiu para outras andanças, conhecendo as gentes e aprendendo a sua humanidade. Manuel Freire, José Mário Branco, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho, Francisco Naia, Luís Cília, Fausto, Tino Flores e muitos outros engrandeceram a sua voz, cá ou no estrangeiro. E têm nas figuras de Zeca e Adriano uma fonte incontornável de inspiração.

Após o 25 de Abril, e no calor do processo, uma certa cegueira tomou conta de alguns revolucionários e, sem capacidade de discernimento, o fado foi injustamente considerado reaccionário. Ciente do ataque de que o património cultural da canção de Coimbra tinha sido alvo, José Afonso reafirmava a sua posição e independência, voltando a gravar fados e baladas. Estávamos em 1981.

Os anos 80 vão ficar também marcados pelo surgimento da Rádio Universidade de Coimbra, projecto com raízes antigas que trouxe um contributo importante para a expressão e difusão não apenas da vida académica, mas também de uma cultura que lençou sementes. Esses novos movimentos culturais, nova expressão da urbanidade, vieram somar-se ao ao papel recreativo desempenhado pelas Repúblicas. Novos espaços nocturnos, novos eventos, novos circuitos e viveres alternativos estão, certamente, na base de novas músicas. O programa de culto Santos da Casa, que há anos promove a música nacional independente, é um bom exemplo desse espírito interventivo.

À semelhança das "movidas" lisboeta (em torno do Bairro Alto, concertos no saudoso "Rock-Rendez-Vous", um fermentar de ideias e projectos - editoras musicais como a Fundação Atlântica, AmaRomanta, Dansa do Som, e grupos musicais como Pop dell'Arte, Sétima Legião, Ena Pá 2000, Linha Geral) e bracarense (concertos na "Fábrica" e no "Deslize", a editora Facadas na Noite, e bandas como Mão Morta, Rongwrong, Rua do Gin, Bailde de Baden Baden ou Humpty Dumpty), Coimbra teve também as suas "consequências" e manifestações alternativas.

Um pouco mais tardias e mais "internacionalizantes", desde o final dos anos 80, Coimbra tem sido uma boa fonte de bandas, com o punk, o blues e o rockabilly como estilos representativos. Entre elas contam-se os M'as Foice, Amantes de Maria, Ruby Ann & The Boppin' Boozers, Garbage Catz, Tédio Boys, Vicius Corruptos, Cave Canem, Tu Metes Nojo, Wraygunn, The Legendary Tiger Man, Belle Chase Hotel, Voodoo Dolls, Quinteto Tati, Bunnyranch, Parkinsons e outros.


Ora, como se explicaria o surgir destas expressões urbanas sem o fomento da RUC, dos bares, dos tascos, das Repúblicas, da Universidade, dos estudantes, das salas de espectáculo (como o TAGV)? Com certeza que seria muito difícil. O papel dos espaços de reunião, fomento e convívio é inseparável da criação de movimentos culturais e artísticos.
A cultura e o sentido democrático aliam-se.

Coimbra continua na frente do sentir alternativo português. Os programas da RUC reflectem esta força criativa. São alunos que agora nos educam. Que fazem de nós, novos alunos.

Leituras:
Rui BEBIANO e Maria Manuela CRUZEIRO (org.), Anos Inquietos, Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), Porto, Afrontamento, 2006
José Jorge LETRIA, A canção política em Portugal, Ed. A Opinião, Porto, 1978; 2ª ed.: Ulmeiro, Lisboa, 1999
Eduardo M. RAPOSO, 1960-1974 - Canto de Intervenção, Ed. Público, Lisboa, 2ª ed. revista e aumentada, 2005

Ligações:
Universidade de Coimbra
Guitarra de Coimbra (Blogue com ampla informação sobre a tradição coimbrã e a vida da cidade)
Associação José Afonso
Adriano Correia de Oliveira
Rádio Universidade de Coimbra
Centro de Documentação 25 de Abril

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