Psicogeografia
... E íamos nós pelos ares quando alguém que vinha em sentido contrário, nos disse:
- Não estais a perceber absolutamente nada.
Por isso, vou resumir-vos o que é que se está a passar.
Vós vedes os textos à vossa volta, mas todos os caracteres vos são ilegíveis. Por exemplo, este texto que agora está aqui, se for demasiado longo, de determinado ponto os vossos olhos não passarão. O excesso de texto cansa por antecedência, mesmo sem vos perguntardes ou vos deterdes nisso. E é precisamente por esse motivo que agora se impõe uma pausa. Pode ser bem sucedida através de um parágrafo,
Assim.
Ou através de algum espaçamento entre as linhas.
Ah, deixem-me falar-vos duma boa piada. É que eles, lá nas universidades, fazem aquilo com tanto espaçamento, entre as linhas e entre as letras, que cada calhamaço até impressiona o próprio pacóvio que escreve (ou copia) os trabalhos. De modo que ele diz para si mesmo "Eh, pá, isto e tal...", não interessa agora estar a precisar.
Há também aquela táctica que é a da rendição, ou se o "texto" (sim, entre aspas) a comunicar assim o requer, à imagem, antepondo infalivelmente a máxima de que "uma imagem vale mais que mil palavras. Por extenso ou em numeral. Assim: 1 Imagem Vale + que 1000 Palavras. Fica catita e tal e cumpre-se mais uma banalidade e todos gostamos delas, não foi assim que te ensinaram para estares bem integrado na sociedade?
Portanto, recorremos aqui ao nosso amigo Raimundo Quintal, cujas mui ilustrativas fotos reproduzimos - cremos que não se importará que o façamos. Com o título "Pouco aprenderam com a dolorosa lição da natureza" (pôr frases a negrito, mesmo que não estejam à cabeceira dos textos, é também um truque muito usado nos meios habituais). As legendas são do geógrafo madeirense:
Ribeira da Madalena - foz demasiado estreita , assoreada e incapaz de dar vazão ao caudal lamacento numa próxima cheia repentina - 02.02.13
O estaleiro da AFA continua a crescer na Meia Légua. O canal de escoamento da Ribeira Brava continua estrangulado - 18.02.13
Deslizamento na vertente oriental e obstrução do leito da Ribeira da Madalena, a jusante da estrada regional -02.02.13
O estaleiro da AFA continua a crescer na Meia Légua. O canal de escoamento da Ribeira Brava continua estrangulado - 18.02.13
A vertente oriental da Ribeira de Santa Luzia no troço entre a Fundoa e os Viveiros é facilmente erodida sempre que o caudal cresce - 15.11.12
Água de Pena - o promotor e o empreiteiro da nova estrada não repararam no ribeiro. Os serviços de hidráulica do governo regional ignoram o problema. Quando chover intensamente o mesmo empreiteiro ganhará dinheiro no desassoreamento.
Ribeira de Santa Luzia - troço entre a Fundoa e os Viveiros - os deslizamentos e os desabamentos de blocos rochosos reduzem a secção de vazão e poderão provocar a obstrução do canal sob a rotunda dos Viveiros.
Entretanto continuam as obras de desfiguração da Baía do Funchal com o argumento do aumento de segurança da cidade em futuras cheias repentinas - 18.02.13
Agora que prestamos um bom e notável serviço para alertar e informar as populações
(atenção, isto pode soar a tom irónico, mas os gritos fundamentados de Raimundo Quintal são mais uma corrente contra os maré do conformismo e da estupidez no altar e a mandar nos ditos servos, e aqui, com estas imagens e divulgação, prestamos homenagem ao geógrafo e um favor à lucidez) (fazer ressalvas também é adequado nos textos compridos: pode também ajudar a quebrar a "seriedade" do "corpo", vulgo "aborrecimento")
para que quando a tragédia voltar a acontecer ("não é uma questão de "se", mas uma questão de "quando") (tal como estão as coisas, parece haver uns espertinhos que andam a pedi-las...) sabermos que há responsáveis a julgar e encarcerar. Porque se o assassinato é punível com pena de prisão, porque não hão-de estes casos, flagrantes, de cair fora desta alçada? Olhem, naquele caso lá do meteorito da Sibéria também as seguradoras lavaram as mãos: porque o seu trabalho é fazerem dinheiro - se tiverem que dispensar alguma soma da enorme maquia que vão juntando, então, declaram falência.
Mais uma pausa.
E mais um parágrafo a nadar no nada.
O problema para que andamos a alertar desde o começo deste texto é que a vida é um processo contínuo. Não tem intervalos. Isto, se não enveredarmos pela concepção - aliás, que subscrevo - de que cada filho que nasce é uma metamorfose mais da mesma vida (mas isso seria irmos por um caminho que não cabe agora aqui - esta é outra frase comum em teses académicas...). E se tudo é contínuo e a linguagem uma forma de organização do mundo, como apreendê-lo bem, correctamente?
Do que estamos a falar é do ruído em si.
Dos gritos que damos no meio do vozear constante das grandes aglomerações urbanas, cada vez mais confundidas com aglomerações humanas.
Chegamos a casa cansados. Cansados do esforço físico que fizemos no trabalho cada vez mais exigente e esvaziante. Cansados do esforço da atenção requerida pelos assaltantes estímulos que se dirigem a nós como os vendedores de cartões de crédito.
Donde decorre que, a dada altura, demasiado fatigados, nos fechamos ao exterior e procuramos em nós, à nossa maneira, finalmente, o porto de abrigo mais que devido. Para mantermos a sanidade.
Lermos um livro, escrevermos. Simplesmente ouvir música, olhando para dentro e escutando com atenção as notas e a poesia.
Deste processo de fechamento resulta a destruição da geografia. É uma frase nada inédita, cremo-lo, mas bem séria. Da abstracção forçada pelo controlo mediático e comunicativo (das coisas que, se reflectirmos, pouco nos interessam) vamos, lentamente, arrancando os papeis de parede que com tanto labor aprendemos a colar às coisas. Esse papel de parede, com a cola a deformá-lo (e à parede também) é o sentido de que as impregnamos.
Assim, no nosso cantinho, talvez ouvindo música pelos nossos "fones" (gosto desta palavra originariamente grega), ou alienados na teclagem do telemóvel, que nos faz já nem olhar à esquerda ou à direita (e isto é também uma metáfora) nas passadeiras que nos vão, de longe a longe, estendendo (com o prejuízo de sermos atropelados e mal-vistos pelos condutores apressados e obrigados à atenção que os peões parecem muito bem dispensar), vamos passando pelos espaços agora vazios.
O espaço não passará de um vácuo que teremos de preencher.
E se formos vazios só de vazio poderemos enchê-los.
E deles não rezará a história e a história não rezará por eles.
E tudo perde o sentido, pois que o sentido - tal como a direcção, numa seta - não passa de uma relação entre, pelo menos, dois pontos.
Se a nada nos relacionarmos, não saberemos, de vez, ler os vários e variegados textos que nos são apresentados.
Há ainda aquela nova forma de comunicar, parida da vertigem dos tempos ditos globalizados, não modernos pois é uma faceta mais do velho obscurantismo, que é a de que querer tudo abarcar (talvez para precisamente deixar tudo de fora mas com a sensação contrária), que é a de estabelecer hiperligações no "corpo" do texto. Por exemplo, aquela Ribeira Brava ali em cima fotografada tinha sido captada pelo Rogério pouco após o massacre de Fevereiro de há três anos.
Foto de Rogério Madeira, Ribeira Brava, 26.02.2010.
O excesso de informação será cada vez mais excesso e - como na internet - passaremos à frente das coisas que estão a gritar-nos para que as ouçamos, as leiamos, as pensemos.
Este é o fim da Geografia.
Porque a Geografia tem que ver com tudo.
Porque a Geografia nada voltará a dizer-te, então.
A parte da "psico" no título deste artigo tem que ver com a parte interactiva que tem de se estabelecer com o objecto por parte do sujeito.
Obrigado a quem conseguiu ler tudo isto.
Significa que ainda consegue ter capacidade de atenção e concentração, sem as quais nenhum raciocínio bem construído se consegue.
Que um homem que não pensa e não consegue organizar o seu pensamento não passa de animal inferior às suas expectativas.
Amén.
Hey, you blacklist, you blacklist, I've seen what you have done.
I've seen the men you've ruined and the lives you've tried to run,
But the one thing that I've found is, the only ones you spare
Are those that do not have a brain, or those that do not care.
The Ballad of John Henry Faulk, Phil Ochs
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