A Polícia, a Répública e os Marginais

As sociedades que se organizam em Estados criaram essa instituição repressiva que é a Polícia. Força coerciva, mesmo que não exerça violência física, que, pela sua simples presença ou existência, é um ante-garante da ordem pública.
E aqui reside a primeira contradição em que se vê enredada a Polícia, batata quente a mudar mãos que, ao contrário da expressão, precisam desesperadamente é de ter as mãos bem quentes. Como as costas, aliás.
Mas não de levar nos costados.

A Polícia deve defender a Pólis, pois foi originariamente nesses fundamentos que foi criada. O Ágora das nossas cidades, a janela que dá para o nosso estádio de evolução democrática, não é já o centro da vida organizativa e para a qual todas as ruas devem ir ter.
A discussão, a valorização e a contemplação agórica padecem agora, paradoxalmente, de claustrofobia. Ora, a doença consiste em elas não quererem, ou não poderem, sair dos claustros para onde têm sido empurradas.
Pela Polícia.

A rés pública mudou de cor, um pouco ao jeito da vaca milka. Ela, que nos vendem sempre ser incolor, no sentido de imparcial, vai sendo conspurcada pelos que lhe vão secando as tetas.

No meio de tanto chocolate quente, sugado àqueles que o produzindo não o bebem, nos vamos esquecendo que a transparência que é própria da senhora cega da República, a Justiça, não é NEM PODE SER imparcial.
Pois que em Democracia, os valores que contra ela atentem não podem ser alvo de aprovação. E como o cão expulsa a carraça, também a República devia expulsar aqueles que a sugam até ao tutano (dizem que o tutano é o supra-sumo da política económica capitalista...).
Sem piedade devia fazê-lo.
Nós somos as vacas, e eis as nossas tetas para vos servir.

E então deparamo-nos com outra contradição essencial da Pólis: os Marginais.

Os marginais são aqueles que estão sempre à margem. Da lei ou na Praça.
O paroxismo consiste, como já reparámos, em termos os marginais a ocupar - e não saem de cima nem deixam para lá ir outros - o espaço central da Democracia. 

São eles que legislam e governam os outros para si próprios.
E fazem-se representar pela polícia. E pelas polícias que nos policiam a vida.

Invadem as praças sob a forma de empresas e bancos, que - lá vêm os fundamentalistas - tapam a vista aos monumentos há muito plantados nas suas pontas ou nos seus centros estratégicos. Descaracterizam a cidade, levando o olhar a obstacularizar-se com o que até então era essencial - o monumento e os valores que ele materializa - e a obnibular-se com os valores que representam a visão do particular e do não-sustentável colectivo.

As praças levam, por vezes, o nome de estátuas que levam ao meio. Por exemplo, a Praça Camões, em Lisboa.
Perdida a memória, as metáforas, a narrativa, a poesia, e os eventos dos Lusíadas e da sua lírica na Escola (outro termo grego indissociado da Pólis, onde devem ser transmitidos e defendidos os valores da coisa pública), será uma consequência lógica (outro mais, da filosofia clássica) erigirmos estátuas em forma de shoppings (vejam que a linguagem do poder até muda de idioma, impregnada que vem dele e das suas sedes) ou de prédios de escritórios.


O Pensador, estátua da nossa Democracia


Cá em Braga, temos na Praça Conde de Agrolongo, mais conhecida como Campo da Vinha, anterior local das trocas de bens do e pelo povo, um Instituto Wall Street, que o Inglês é, como já disse acima, o símbolo metafísico do exercício do poder. Portanto, na organização mental e social que visa o fim económico.
Por baixo temos, actualmente, uma Maria Bolacha, pastelaria-café que nos traduz um convívio que migrou para espaços privados e espaços de consumo. E, Maria Bolacha, bolacha Maria, consumo de bens perfeitamente acessórios, ou, por outras palavras, marginais.

Muito nos queixámos e agora menos nos queixamos do mamaraxo que o edifício representa para quem, do cimo da praça, quer ver a igreja onde funciona a Câmara. Mas, elo perdido, facto consumado, cada vez nos queixamos menos. Uma das formas de nos queixarmos menos é frequentarmos e alimentarmos essas empresas.

Isto traduz, ipsis verbis, a marginalização de nós mesmos. 
Somos as vacas loucas, alimentadas a farelo de engorda nas ZPI, zonas de produção industrial, mediatizadas e alienantes como alienados estão a escola e o ensino dos valores colectivos.
Nós, que nos julgamos os arautos da coisa pública e da defesa dos valores democráticos, estamos sempre a ceder, face à gula e às sacaroses ("vive rápido, morre novo!"), aos interesses dos privados.

Assemelhamo-nos ao visionário, agora transformados em loucos, se anti-marginais houvesse para nos julgar, do Cinema Paraíso, gritando já quase só para si:

- Esta praça é minha, esta praça é minha!...

Enquanto com sacos de plástico na mão vai tentando achar o seu caminho por entre os carros que a preenchem.

Ou seja, amputámos os santos para nos devotarmos com os ex-votos.

E a consequência desta mutação de valores públicos em valores privados será a mesma a aplaudir a substituição da estátua de Camões por uma estátua de Relvas, esse pingue, palerma, pacóvio, parvo, estúpido, cínico, parassimpático,  privado, palonço, mentecapto sujeito, cuja cantoria agora me conspurcará a alma de cada vez que me lembrar da palavra fraternidade.

O assassínio da Grândola, na efeméride da morte do seu cantor.

Relvas não cai, não: Relvas não sai, porque é uma nódoa, porque na nossa democracia só dispomos de água suja.

Não fomos nós que o escolhemos.
Não fomos nós que o elegemos.
(a representatividade em questão)

Mas padecemos da falta de dignidade e é esse vazio de que dispomos para abater os que nada têm que ver com Democracia, nem com Liberdade de expressão.
É muito pouco.
Despojados, é quase nada.
E sofremos.

Relvas representa-nos, pois é a imagem do poder da corrupção, do cinismo, do metedismo e do que quer sempre ver como sacar mais uns dinheirinhos nas negociatas, não importa quais, fazes só aquilo para que foste madatado. Pago.

A questão da representatividade é a estátua ou o monumento que decidimos pôr no dia-praça em que temos de passar para viver.
Relvas e seus acólitos que se queixam da falta de liberdade de expressão, os garantes da democracia podre e cínica.
Relvas, a polícia que temos.

Volta, Zé Cabra. 
O vento está de feição e sopra enrolando os tufos de porcaria que rebolam como relva seca pelo alcatrão que nos tapou os poros da decência.

Para o abismo, s.f.f. (sem fazerem favor)

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