A aritmética da catástrofe (II)

Desconheço se hoje chove menos que há 100 anos. Ou, tanto quanto os climatologistas poderão dizer-nos, se chove hoje menos que desde os primeiros registos meteorológicos.

Mas o que quer dizer chover menos?
Antes de mais, tenho de precisar que me refiro à quantidade de precipitação total, isto é, no mundo inteiro. Se é que é possível calculá-la.

Ora, as abcissas estão definidas: tempo (os dois momentos: início dos registos e registos de hoje) e espaço (mundo inteiro).

Grande empresa sabê-lo, certo?
Pois o que nos têm dito é que aqui chove menos que o que chovia, que ali já não neva há tantos dias ou anos, que acolá o bioma mudou, ou etc., etc.

(Desculpem estar a maçar-vos com esta epistemologia da treta. Trata-se de reflectir em termos puramente filosóficos. E perceberão que de mais aritméticas não precisamos para chegar à catástrofe.)

Ora, mas suponho que o tamanho da nossa hidrosfera (mares, lençóis, glaciares, rios, nuvens) se tem mantido igual. Pelo menos desde a formação dos oceanos. Espero não estar a dizer uma asneira gigantesca, mas corrijam-me para eu saber quão errada é a minha suposição.

Portanto, se aceitarmos esta premissa, a quantidade de água tem sido sempre a mesma.

Atenção: não estou a deter-me no espaço (volume) que essa água ocupa no globo, pois sabemos do devir climático ao longo da história da Terra. E sabemos que o gelo ocupa mais volume que a mesma quantidade de água que pode originá-lo.

Simplisticamente, a equação desse devir resume-se a isto:
Climas mais frios = mais gelo = menos água (no estado líquido, entenda-se).
Tal implicou uma maior área continental descoberta que a que hoje temos.

E é aqui que quero chegar: a área continental.

Se enchêssemos um copo com água, estranho seria se ela se sumisse. Podia estar furado, sim.
Bem, em condições normais, a água acumulava-se até cima (óbvio: falou-se em encher o copo...).

Isto, simplesmente, porque "os átomos da substância de que é feito o copo têm uma estrutura mais unida que os da molécula água". Vulgo, (o copo, de vidro, de plástico...) é impermeável. É assim que eles são feitos, para desempenharem essa função.

Já um pedaço de terra pode comportar-se de maneira distinta. Tal como quando regamos um vaso (com plantas...), a água vai-se sumindo. Importante é não deitar demasiada água de uma vez - temos de dar tempo para que ela se infiltre.

Imaginem agora este simples gesto feito num vaso sem plantas e que, em vez de terra (solo: matéria orgânica + ar + matéria mineral), tenha areia.
Normalmente os vasos dispõem de um buraco, para o excesso de água não ficar a apodrecer as raízes. Ora, sem estar muito calor, será apenas uma questão de tempo para que a água que desaparece da nossa vista atravesse a areia e saia pelo orifício.

Frustrante, não é?
Conclusão: a areia não retém a água.

O que é que melhor retêm a água?
Os seres vivos. As árvores, por exemplo. Das quais costumo dizer, a brincar, que são concentrações de água na vertical. Com grande utilidade. Para todos.
(Esqueçamos por ora as guerrinhas dos agricultores aos sorvedouros de água que são os eucaliptos, etc.)

...

Mas afinal de que catástrofe é que estamos a falar?

Recuperemos as "obras" listadas na primeira parte deste artigo.
Atribuamos a cada uma delas uma medida de superfície. Pode até ser um centímetro quadrado. Não interessa. E o pior é que cada caso corresponde a bem mais que essa medida. Depois basta-nos multiplicar cada caso pela frequência com que os vemos acontecer à nossa volta.

Cada "obra" por um lado, retira e reduz áreas de infiltração e/ou, por outro, aumenta áreas de escorrência.
Cada árvore derrubada é menos um certo volume de água retida.
Cada incêndio ocorrido é mais um certo volume de água perdida.

A água que cai no telhado não fica no telhado.
A água que cai nas estradas não fica nas estradas.
E por aí fora...

"Oh! Mas estamos a falar de coisas insignificantes!"

Sim, mas quem poderá negar que uma pedra atirada ao mar não o obriga a dilatar a sua área?

Bem sabemos de certas dificuldades do nosso pensamento para certos raciocínios (como por exemplo pensar em termos geométricos). Mas este parece-me um bê-á-bá grosseiro. É lógico.

Conclusão das conclusões:
A tal mesma água que existe tem menos área onde ficar. Cada vez menos área. E isto é quantificável. Cada país que calcule as suas perdas.

Para onde vai a água então?
Resposta: vai para onde puder.

Consequência necessária:
Acumula-se. Seja nos rios, seja no mar, seja nas nuvens, seja nas barragens...
E, por conseguinte, quando algo está acumulado, não está distribuído.

Daí as monções e as cheias catastróficas, nuns lados, e os desertos, noutros.

"Ah! As coisas não são assim tão simples!"

Pois não. Claro que não.
Talvez por isso continuemos a "atirar pedras ao mar".

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