Música para Neozelandês Ouvir
Não sei muito sobre o período revolucionário do meu país. Sei, no entanto, bastante da música que esse período produziu.
A minha opção de apresentar este género não partiu portanto de um interesse particular pela Revolução, mas sim por um interesse particular pela música da Revolução. Excluí o fado porque está demasiado conhecido por quem gosta de música do mundo; e o pop rock é igual a todos os outros popes rockes do resto do mundo. Pensando bem, talvez se possa mesmo defender que as canções que se fizeram nos anos que rodeiam o 25 de Abril, e dedicados a ele, sejam as mais portuguesas de sempre, com a sua mistura de urbano e rural, antigo e intervencionista, tradicional e eléctrico. Penso nas soluções originais de raíz rural do Zeca Afonso, nas harmonizações inéditas mas tocadas com instrumentos populares do Sérgio Godinho, na força universal da tipicidade lusitana dos Trovante.
Essa era alguma da música que levei para a Nova Zelândia. Seguiam na bagagem também o José Mário Branco, o Vitorino, o Adriano, o Cília e o Carlos do Carmo - este último não por causa do fado, mas por causa daquele medley de homenagem aos cantautores de Abril que ele apresenta no disco do Olympia.
Começámos pois a nossa pequena revolução radiofónica com «Grândola, Vila Morena», seguimos com «Os Pontos nos Iiis», «Trova do Vento que Passa», e ainda «Uns Vão Bem Outros Mal», «Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades», e por aí fora. Eu ia explicando em inglês os títulos, os temas, as razões, a conjuntra em que nasceram todas estas canções. O Xavier fazia perguntas, as minhas respostas contextualizavam a música dessa noite num passado distante de caravelas e impérios e num passado recente de activismo, lutas e conquistas sociais.
Não sei o que terão pensado os agricultores, os criadores de gado, os lenhadores dessa comunidade rural de duas mil almas [Raglan], sobre esta revolução que lhes entrava pela casa adentro na noite serena. Terão talvez pensado que este povo português é tramado. Um povo de irredutíveis idealistas. E também um povo solidário, sensato, espartano, gente imune às tentações do consumismo bacoco e arrivista. Eu não desfiz o engano no final do programa, deixei-os ficar com essa ideia. Para se actualizarem, terão de vir ao fim do mundo para eles. É muito longe...
Gonçalo Cadilhe, em "Um Lugar Dentro de Nós", Clube do Autor, 2012, pp.100-101
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