A quente
...Pessoas que nós não vemos há anos, até.
Um incêndio não é um bom motivo para nos reunirmos todos. Mas é quase necessário. E também isto me preocupa. Onde temos andado, e tal, ? porque e mas quando é preciso estamos cá todos. Prontos para a batalha fatal.
Éramos talvez mais de dez. E enquanto o fogo ardia, crepitando a poucos metros e nas alturas das árvores, houve um espesso silêncio. Ninguém dizia nada. Observávamos.
Impotentes e deixando arder o que lenta e silenciosamente fomos perdendo até chegarmos a esta hora...
E lembro-me de tudo quanto foi e continuará a ser.
Dos eucaliptais, dos madeireiros, dos bombeiros, dos farenheits451, dos cortes do governo, do desinteresse, do mero-pano-de-fundo-para-as-nossas-vidas, da falta de ordenamento, do abandono, das cabras que já não pastam porque já não há cabras....
(...e penso que incêndios assim estão para o ordenamento como as crises, a inflação e a deflação estão para o sistema monetário e o capitalismo....)
Lembro-me de todos pressentirmos entre nós a busca de um culpado, sempre a nossa sanha secular de um bode expiatório, de perseguirmos alguém e, se preciso, merecer o fogo que nos vai queimando o olhar e enegrecendo a vida...
(... mas "más allá de mis penas personales, me ensancho, me ensancho...")
Lembro-me das perdas pessoais e colectivas, acauteladas?, não acauteladas?, do espaço dito privado e da falta de zelo, porque "isso é lá com eles e não tens nada que meter o bedelho"...
Sei dos criminosos que já partiram com a sua maquia e deixaram mais uma mais valia para o fogo, parece que cuidadosamente espalhada pelo chão.
E sei que, como diz a canção dos Moody Blues, quem transforma a terra em deserto continua sem ser considerado criminoso...
(Ah, a nossa bela capacidade de julgar e do silêncio compadecido ou cúmplice...)
Enquanto me lembro de todas estas coisas e muitas mais, num ápice tudo isso desvale a pena.
No vórtice dos ventos, todos estes pensamentos são consumidos pelas chamas às nossas frentes. Pelo fogo à nossa frente e lá por cima.
No vórtice dos ventos, todos estes pensamentos são consumidos pelas chamas às nossas frentes. Pelo fogo à nossa frente e lá por cima.
Espectadores durante todo o espectáculo, observadores até ao desfecho.
Neste momento, a zona de batalha é um lugar destroçado e negro, os lutadores continuam a pairar sobre as nossas cabeças enquanto o ruído dos helicópteros entra nas nossas cabeças e o cheiro de cinza continua nos nossos narizes.
Pensei,
vamos dar o nosso testemunho disto. Desta noite longa e rápida de 28 de Julho de 2011.
Cada um que diga o que pensa, viu e sentiu.
Reuniremos tudo e assim será a história desta terra queimando-se que nos aflige.
"Na Alemanha, se queres cortar árvores, não é assim. Vai lá o técnico da Câmara, pergunta ao interessado na madeira
Quantos quilos queres?
Ok, podes cortar aquela, aquela e aquela."
Não é assim. [deitar abaixo todas as que nos apetece e deixar as cascas, belo material combustível...]. Tiras a madeira, mas não podes deixar cascas, nem o serrim... Não podes deixar nada...
Vivi lá 17 anos e nunca vi um incêndio. E há florestas por todo o lado.
E em Maio as pessoas vão todas fazer churrascos."
(Algo como isto, espero não estar a deturpar a memória, à soma do fumo e do sono...).
Este é um testemunho.
Apenas.
É hora de chorar sobre o desfeito e o incendiado.
De chorar esta terra e este país.
É hora de uma vez mais (dez anos depois?) olhar a terra queimada e a cinza fria e sentir "que amor não se entrega na noite vazia?"
A vingança vai-se servindo.
A quente.
A quente.
Disse a Mãe, chateada até aos ossos.
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