Reflexos e Reflexões


Ao começar, o milénio convida-nos a reflectir sobre a própria reflexão que sobre ele poderá vir a ser feita. O verbo reflectir é semanticamente muito ambíguo pois que conota dois fenómenos contraditórios: reflexo e reflexão. Reflectir enquanto produção de reflexos é um fenómeno passivo, não criativo, que assume como só existindo aquilo que lhe é dado reflectir. É assim que a lua reflecte a luz do sol. Ao contrário, reflectir enquanto produção de reflexão é um fenómeno activo, criativo, mobilizado pela identificação de uma falta ou de uma ausência naquilo que existe. É assim que reflectimos sobre as nossas vidas ou sobre a sociedade e o tempo em que vivemos. Claro que a contraposição entre reflexo e reflexão não é total. Há sempre algo de criativo no reflexo: o espelho não reflecte exactamente o nosso rosto; tal como a reflexão tem sempre algo de passivo: as reflexões que fazemos sobre a nossa vida são reflexos da vida que temos. Mas a contraposição é essencial, pois é através dela que medimos o grau de autonomia (ou de alienação) com que vivemos as nossas vidas: dominamos melhor o mundo sobre o qual reflectimos do que o mundo de que somos mero reflexo.

Vivemos o século XX sob a égide de três mestres: um mestre do reflexo: Freud; um mestre da reflexão: Nietzsche; e um mestre da mediação entre reflexo e reflexão: Marx. Foram eles que escreveram o guião da nossa relação com o mundo - mais ou menos activa, mais ou menos conformista - nos últimos cem anos. Ao entrarmos no novo milénio, verificamos que as lições destes mestres têm vindo a perder poder de convicção sem que, no entanto, estejam a ser substituídas por outras lições de outros mestres. Somos hoje mais exigentes ou apenas menos educáveis? Penso que a questão é outra. Só são precisos mestres quando há tensão entre reflexo e reflexão e essa tensão está a desaparecer nas sociedades mais desenvolvidas. Nestas sociedades é cada vez mais fácil passar por reflexão o que é apenas reflexo, passar por actividade o que é apenas passividade, passar por plenitude o que é uma inominável carência. Por isso, nestas sociedades o que está fora da consciência é sobretudo a consciência de que algo está fora dela.



Três exemplos, que são três ângulos sobre o mesmo síndroma. Os consumidores simbolizam hoje o paroxismo de uma actividade que se agita freneticamente no interior de um círculo de escolhas ante as quais é totalmente passiva. O crédito ao consumo permite transformar a carência em plenitude antecipada. O segundo exemplo é a classe política, sobretudo a que está no poder. Como o seu poder é cada vez mais reflexo de outros poderes (capitalismo global, União Europeia), a sua capacidade de reflexão é medida pela sua disponibilidade para ser reflexo. Quem, no interior dessa classe, quiser fazer reflexão, é posto na ordem do reflexo. O terceiro exemplo diz respeito aos criadores de opinião, entre os quais me incluo. Dominados pela vertigem da autonomia e, portanto, da reflexão, ignoram as filiações de que são reflexo. Tendo perdido a mediação entre reflexo e reflexão, quando concordam entre si, ignoram-se porque se repetem, e quando discordam, ignoram-se porque as suas diferenças são incomensuráveis. Nestas condições não é possível nem o consenso nem a polémica. Por isso, nem os educadores educam nem ninguém educa os educadores.


Boaventura Sousa Santos
Publicado na Visão em 28 de Dezembro de 2000
Última crónica, também, da compilação "A Cor do Tempo Quando Foge", Ed. Afrontamento.


Este texto é das coisas mais geniais que alguma vez li.
Para renovar por todas as vezes em que lhe reconheçamos validade.

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