As cidades que tornamos invisíveis*

Não pude resistir a partilhar convosco um texto incrível da obra de Italo Calvino "As Cidades Invisíveis". Foi uma óptima sugestão do Rogeriomad, publicada em Junho passado, que em muito boa hora acolhi.

Na verdade, este artigo mereceria a divisão em dois: um para notas e comentários mais ou menos interpretativos do texto em questão; o outro para a transcrição integral do mesmo. Ou seja, mais um estrato delicioso (podiam ser muitos outros...), como aqueles que faz dias que não trazemos ao
Georden.

Sendo o estrato que se segue muito mais eloquente que quaisquer notas que possamos adicionar-lhe, aqui o deixamos, sem mais delongas ou máculas. E optámos por pôr essas mesmas notas (os * do título deste artigo) na reciclagem. Bem! Mas mais palavras para quê? Intitula-se "As cidades contínuas. 1" e diz assim:



A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas canções no último modelo de aparelho de rádio.

Nos passeios, embrulhados em rígidos sacos de plástico, os restos de Leónia de ontem esperam o carro do lixo. Não só tubos de pasta dentífrica bem apertados, lâmpadas fundidas, jornais, contentores, restos de embalagens, mas também esquentadores, enciclopédias, pianos, serviços de porcelana: mais do que pelas coisas que dia a dia são fabricadas vendidas compradas, a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que dia a dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza. A verdade é que os varredores são recebidos como anjos, e a sua tarefa de remover os restos da existência de ontem está rodeada de um respeito silencioso, como um ritual que inspira devoção, ou talvez porque uma vez deitadas fora já ninguém quer tornar a pensar nessas coisas.

Para onde levam todos os dias a sua carga os varredores, ninguém quer saber: para fora da cidade, claro; mas cada ano que passa a cidade vai-se expandindo, e os depósitos do lixo têm de ir parar mais longe; a imponência dos desperdícios aumenta e as pilhas erguem-se, estratificam-se, cobrem um perímetro cada vez mais vasto. Acrescente-se que quanto mais se aperfeiçoa a arte de Leónia no fabricar novos materiais, mais o lixo melhora a sua substância, resiste ao tempo, às intempéries, a fermentações e combustões. É uma fortaleza de resíduos indestrutíveis que rodeia Leónia, que a domina como um maciço de montanhas.
O resultado é este: que quanto mais Leónia deita fora, mais coisas acumula; as escamas do seu passado fundem-se numa couraça que não se pode tirar; renovando-se dia a dia a cidade conserva-se toda na única forma definitiva: a dos lixos de ontem que se amontoam nas lixeiras de anteontem e de todos os seus dias e anos e lustros.

O lixo de Leónia pouco a pouco invadiria o mundo, se sobre a interminável lixeira não estivessem a fazer pressão, para lá do seu extremo confim, as imundícies de outras cidades, que também mandam para longe de si montanhas e montanhas de lixo. Talvez o mundo inteiro, para além dos limites de Leónia, esteja coberto de crateras de lixo, tendo cada uma ao centro uma metrópole em erupção ininterrupta. Os confins entre as cidades estranhas e inimigas são bastiões infectos em que os detritos de ambas se escoram uns aos outros, se sobrepõem e se misturam.

Quanto mais cresce a sua altura, mais paira o perigo das derrocadas: basta que uma lata, um velho pneu, um garrafão desempalhado rebole para o lado de Leónia e uma avalancha de sapatos rotos, calendários de anos anteriores e flores secas submergirá a cidade no seu próprio passado que em vão tentava expulsar, misturado como o da cidade limítrofe, finalmente purificado, um cataclismo arrasará a sórdida cadeia montuosa, apagará todos os vestígios da metrópole sempre vestida de novo. Das cidades vizinhas já estão prontos com rolos compressores para alisarem o solo e alargarem-se para o novo território, para aumentarem e afastar de si as novas lixeiras.

Comentários

Edward Soja disse…
Depois de ler uma coisa assim, nem sei por onde começar a pensar. Os pensamentos enovelam-se, violentos, e querem saltar todos ao mesmo tempo cá para fora.

Como é que é possível que alguém tenha escrito uma coisa assim há 36 anos!! (pelo menos, que 1972 foi o ano da publicação de "As Cidades Invisíveis"...)? Um tal profeta só pode ter sido um génio (e é tido por tal por muitos leitores...)

Gosto da maneira como vai envolvendo-nos nas descrições que faz, partindo do pequeno e em crescendo, gradativamente, para nos esmagar com a violência dos pormenores (neste caso, problemas) acumulados.

As cidades invisíveis, no sentido real da palavra "invisíveis", estão, parece-me, após a leitura deste livro enigmático, fantástico e utópico, mais bem descritas nestes subcapítulos a que Calvino enquadrou no nome de "As cidades contínuas".

Podíamos chamar-lhe protótipos dos não-lugares, de Augé. A eliminação de fronteiras, a perda de referências históricas e espaciais, a desfragmentação das identidades... tudo isso está já implícito nos 5 textos de "As cidades contínuas".

.

Por outro lado, aqui fica bem demonstrado que a produção capitalista assenta na destruição. É tão simples de o concluir após ler um texto assim...

O sistema produtivo vigente é auto-destrutivo. O maior problema é que é kamikaze: mata os outros, também.

As limitações espaciais - outra vez a Geografia em destaque - sobre onde pôr o lixo lembram-nos do carácter invasivo, opressivo e imperialista do sistema instalado.

Não há volta a dar: faz parte da sua natureza. É assim que sobrevive.

Como superá-lo sem o destruírmos por completo?
Não sei. Nem ele nos deixa ver.

Aceitam-se contribuições.
Anónimo disse…
LEr o livro e desenhar as cidades, como interpretação, também é um bom exercício.

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