Ensaio sobre a subversão necessária (Sobre lucidez)
Em verdade, uma acção destas é mais importante que o que pensamos.
Porque não pensamos.
Apropriarmo-nos do espaço público (mesmo que fabricado para servir o capital habitual... -o económico) implica investimento mas sempre lá acaba por causar danos.
E tão maiores são esses estragos se e quanto maior e numerosa essa apropriação.
É sobre esses estragos que vimos (tentando que comecemos a ver-) reflectir um bocadinho hoje.
1. - O sujeito
1.1 - A partilha
As experiências colectivas dão-lhes existência maior.
Simplesmente porque mais pessoas a viveram.
E, como somos e existimos em relação com os outros, somos mais vivos.
1.2 - A memória
A vivência colectiva cria sensações.
E as sensações vividas em conjunto, criam uma memória mais perdurável que a apenas baseada nos conceitos que se incorporam de fora para dentro.
As expressões do corpo, ouvidas ou vistas, vão no sentido contrário: de dentro para fora.
2. - O meio
O meio existe como um espaço apropriável.
Não tem emoções, não tem forças nem fraquezas.
As vibrações não são por ele causadas: absorve-as e retransmite-as.
Mas não é neutro: tem condicionantes.
Quem tem emoções e forças, quem as extrai e as sente, ou quem as porta, de uns para outros lados, são as pessoas.
As pessoas podem escolher ser neutras, simplesmente passando, distraídas do que estão a viver.
Ou podem escolher - se a isso se levarem ou forem levadas - não ser indiferentes: tropeçando, parando para escutar e observar. Para sentir e repercutir essas sensações em si mesmas e no que as rodeia.
Os espaços são seres inanimados aguardando a nossa animação (a nossa alma, portanto) e criatividade.
Os espaços são repositórios das nossas esperanças e aspirações de existência.
Os espaços são manifestações do poder de quem os faz, fez ou fará.
Também por isso não são neutros: transmitem e simbolizam poderes e valores.
Esta actividade estava marcada / agendada / prevista?
Foi pedida autorização? (Vêem-se baias de separação, no topo, junto às escadas...)
Se sim, a partir do momento em que se acharam no dever de a pedir, automaticamente se auto-censuraram no seu poder puro e independente.
Acaso as massas que vão ao futebol pedem permissão aos polícias para passar rumo aos estádios?
Depende por onde, sim.
E a simples presença da polícia - que vigia e, portanto, age com a força coerciva que entidades lhes atribuíram (temos de questionar essas entidades e temos de nos questionar, porque o poder passa sempre por o aceitarmos) - está já a condicionar a própria acção do ser livre, espontâneo.
Estão ao serviço de quem?
Contrastar com
(vulgo "igual Vs. diferente") :
Acaso aos automobilistas lhes é pedido que não atravessem as estradas que foram feitas para atravessar?
A quem pertencem as estradas? e a quem pertencem os automóveis?
A quem pertencem as vidas dos automobilistas?
Estão ao serviço de quem?
1+2=3
Esta interacção sujeito-meio, criativa, viva e alegre, é a mais-valia que não explora nem um, nem outro: está ao nosso serviço.
Não se paga, não se compra, não se vende.
E quem não paga, não se compra, não se vende.
O dinheiro não entra aqui: as relações são humanas, não comerciais.
As trocas são directas: as ficções não se interpõem entre nós.
Sabemos e sentimos com o que contamos e fazemos.
As manifestações públicas (sobretudo as artísticas) são doenças para quem as transmite e para quem a elas se expõe.
São doenças contra a saúde amesquinhante imperante.
Amesquinhante do ser humano e da sua capacidade para ser mais justo e fraterno para com o que o rodeia, para com os que o rodeiam.
A tónica desta subversão da normalidadezinha petrificante está simplesmente em quebrar, agora e sempre, o ciclo afastador de nós mesmos que é criado pelas maiores violências que afligem o homem:
a indiferença (e, portanto, o silêncio),
a desmemória (e, portanto, a desorientação),
a solidão (e, portanto, a distância),
a incompreensão (e, portanto, o medo).
Provocar é um acto de amor.
Provocar é contrário à morte e à não existência.
É uma saída do beco que somos sem o outro.
É uma explosão do beco que somos sem o centro (o coração).
Existir é existirem em nós e fazermo-nos existir nos outros.
Como as palavras são doenças humanamente transmissíveis, a memória e a vida estarão sempre contra os totalitarismos.
Totalitarismos, que, por desleixo, facilmente vamos semeando em nós e à nossa volta.
A praça só faz sentido se for pública.
Se for usada e apropriada - através das vivências, individual ou colectivamente - pelos nossos corpos vivos e activos.
A vida é, em si mesma e já, um manifesto.
Estejamos à sua altura e sejamos homens.
Porque,
afinal de contas...
não é isto a utopia (um espaço que erguemos acima e para além de nós mesmos)?
Comentários
gosto destas palavras sobretudo quando elas e a praça estendem os braços para nos oferecer espaço, razão, justificação.. e ao mesmo tempo nos empurram para diante, para o entusiasmo, para o que quisermos... não gosto destas palavras quando elas se deixam revestir de cor de ódio ou menosprezo,sarcasmo, intelectualismo...porque sim,... porque há muito que acredito que sim, que o alimento mais saciante porque saudável é o que nasce do sorriso, incorruptível,... palavras sorridentes que reverdecem em vez de murchar...que são alegria em qualquer coisa... são manhã...
será da idade?...o protesto faz parte do ADN de uma determinada idade? cansamo-nos do protesto por ter tendência a ser só isso?...
um brinde à praça e ao convite a ela...