"A Cultura-Mundo: Resposta a Uma Sociedade Desorientada", de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy



Título
: A Cultura-Mundo: Resposta a Uma Sociedade Desorientada

Edição Original: La Culture-Monde: Réponse à une Société Désorientée (2008)
Autores: Gilles Lipovetsky e Jean Serroy
Tradução: Victor Silva
Edição: Janeiro de 2010
Editora: Edições 70
ISBN: 978-972-44-1586-4

Paginação: 243 páginas

Excerto (transcrição quase integral, pp. 66-70) do subcapítulo "A Desestabilização dos Mundos Privados":


"A desorientação hiperindividualista ultrapassa em muito a esfera política, como se pode ver nas relações com a família e entre os sexos. A família contemporânea regista baixa taxa de nupcialidade, aumento de divórcios, coabitação pré-nupcial, aumento significativo dos nascimentos fora do casamento e baixa de fecundidade.
À ordem constrangedora do passado sucedeu a família diversificada, que cada um escolhe, sem modelo nem norma absolutos, em função da sua ideia de felicidade.
Ao mesmo tempo que se multiplicam as famílias recompostas e se fala no casamento dos homossexuais, a família é arrastada para um processo de privatização e de desinstitucionalização radical: tornou-se um assunto estritamente afectivo e psicológico, um instrumento de realização pessoal, liberto das exigências de grupo. A dinâmica de individualização destruiu a ordem tradicional, que fazia prevalecer as tradições e os interesses de grupo sobre os desejos pessoais.
(...)

No último século, a condição feminina alterou-se mais do que em todos os milénios precedentes. Pela primeira vez na história, o lugar do feminino deixou de ser pré-ordenado e totalmente orquestrado pela ordem social e natural: agora é um princípio de indeterminação e de livre governo de si mesma que comanda a condição feminina. É claro que este processo é acompanhado pela manutenção de todo um conjunto de traços e de funções herdados da história. Apesar dum forte impulso da cultura democrática, não assistimos a qualquer intermutabilidade real dos papéis sexuais. A mulher hipermoderna conjuga a revolução moderna da autonomia individualisa e a persistência da herança histórica, a dinâmica da igualdade e a perpetuação da dissimetria social masculino / feminino.
(...)

Em princípio, tudo é negociável e susceptível de ser revisto, já nada é evidente, já nada na vida do casal se impõe "naturalmente". Em que altura ter filhos? Quantos filhos? Quem se ocupa deles e quando? Quem vai às compras? Quem realiza esta ou aquela tarefa doméstica? Trabalhar ou cuidar das crianças? Com a dinâmica da individualização, multiplicam-se inevitavelmente os contornos e os temas dos diferendos que opõem os homens e as mulheres que vivem juntos. Assistimos, por um lado, à generalização da norma amorosa como norma do casal e, por outro, ao desenvolvimento de conflitos que se alargam a cada vez mais questões, tendo ambos dificuldade em fazer concessões, querendo cada um realizar-se, reivindicando ambos autonomia e igualdade. Nestas condições, a esfera íntima suscita tanta insegurança, ou mais ainda, que a vida pública. As nossas grandes desilusões ou frustrações são muito mais afectivas que políticas ou de consumo. Quem não viveu esta experiência corrosiva? A relação estreita entre o amor e a desilusão não tem, evidentemente, nada de novo. O que mudou foi a multiplicação das experiências amorosas ao longo da vida.

Apagamento das culturas de classe, recuo dos sentimentos de pertença a uma colectividade, fragilização da vida profissional e afectiva, desestabilização dos papéis e das identidades sexuais, afrouxamento dos laços familiares e sociais, enfraquecimento dos enquadramentos religiosos: todos estes factores acentuaram fortemente o sentimento de isolamento dos seres humanos, a sua segurança interior, as experiências de fracasso pessoal e as crises subjectivas e intersubjectivas. Quanto mais o indivíduo é livre e senhor de si, mais parece vulnerável, frágil e desarmado interiormente. São disso prova a multiplicação dos suicídios e das tentativas de suicídio, a espiral da ansiedade e da depressão, o crescimento das toxicodependências, dos psicotrópicos e das consultas psiquiátricas (*).

É uma fragilização que se desenvolve num quadro de cada vez maior de solidão. O sentimento de solidão é vivido "de tempos a tempos" ou "frequentemente" por mais de um terço de europeus. É como se o desaparecimento de todas as barreiras que restringiam a liberdade individual provocasse apenas o encerramento do indivíduo numa concha pessoal. As cidades tentaculares são como o símbolo desta solidão individual colectivamente partilhada. Desde o início dos anos 60 que a proporção das pessoas sozinhas duplicou, atingindo cerca de 14% em 2004. Há 8,3 milhões de Franceses que vivem sozinhos, sendo cerca de 5 milhões mulheres. Em Paris, uma em cada duas habitações é ocupada por uma pessoa sozinha. Em 30 anos, o número de famílias monoparentais mais que duplicou, representando 20% do total. As pessoas idosas vivem mais de que as outras a provação do isolamento e ficam sozinhas cada vez mais tempo. São muitos os estudos que sublinham o drama do isolamento afectivo e ficam sozinhas cada vez mais tempo. É por isso que proliferam os clubes de solteiros, os sítios de encontros na internet e a dedicação aos animais - em França, há mais de 56 milhões. Mais de 50% das famílias possuem pelo menos um animal de estimação. Nunca na história da humanidade os seres humanos tiveram tantas possibilidades de estar conectados uns com os outros, utilizando redes de comunicação, e nunca tiveram um sentimento de isolamento tão forte. Ora, é este estado de solidão e de infelicidade subjectiva que está subjacente, em parte, ao aumento do consumismo que permite estas pequenas felicidades que compensam a ausência de amor, de laços ou de reconhecimento.
(...)


* - Em França, a taxa de pessoas que sofrem de depressão aumentou sete vezes entre 1970 e 1996. 11% dos Franceses registaram recentemente um episódio depressivo e 12% declararam ter sofrido de ansiedade generalizada nos últimos seis meses. O suicídio é a segunda causa de morte entre os 15 e os 24 anos e a primeira entre os 25 e os 40 anos. Um inquérito recente revela que 15% dos estudantes pensaram no suicídio durante os 12 últimos meses e que 5% fizeram uma tentativa ao longo da sua vida.

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