A Caverna

"Talvez que para manter a sanidade
eu chegue ao ponto de ter que cegar

e a menina dos meus olhos há-de
conseguir ver para além do meu olhar."

"A Menina dos Meus Olhos",
José Mário Branco

Havia uma história em que um homem, em plena luz do dia, andava com uma candeia acesa, a anunciar uma boa nova ao povo.
Tomado por louco, não lhe faziam caso.
Pois para quê uma lucerna quando a luz do dia a envergonha?

A história é escrita por Nietzsche e a boa nova prendia-se, uma vez mais, com a morte de Deus.
Porque a escuridão não era a do dia, mas a da mentalidade dessa gente crente e desterrada.

Em verdade, a seguinte imagem soar-nos-á muito familiar.
Atentemos nela, então:



Talvez não exista visão mais clara que o que ela transmite: não engana absolutamente ninguém.
A razão por que não tem caixilho é precisamente porque ela, a escuridão, não tem limites; estão longe de nós, que não sabemos onde; que estamos dentro dela.

No jogo da simulação, cremos que uma televisão assim está apagada e dela assim nada esperamos. Por outro lado, quando a sabemos ligada e vemos a mesma tela negra, julgamos haver algum problema com a emissão.
Existe esta crença, esta pretensão, de que a televisão, tal como a temos visto, nos dá a ver as coisas quando está ligada.

Ora, o que defendemos - coerentes com a ideia do simulacro, com o que a alegoria da caverna nos revela - é que o botão em "on" serve apenas para mais bem nos enganar:

Enganar-nos sobre o tudo que ela,
quando no-lo mostra,
está a esconder de nós.


Há uns dias esboçámos ligeiramente um exemplo (sobre a abordagem que a tv faz dos incêndios) e eis mais um outro a jorrar da cascata em que tentamos pôr as mãos.
(Nem vamos conspurcá-las com casaspias, carlosqueirozes nem onzesdessetembro, nem pinochetsemcadeirasderrodasaquemumdeusinventadodisseparaselevantareandareeleláandou...)
O caso de que viemos falar, para ajudar-nos a vislumbrar algum desses limites do obscurantismo, não deixa de ser uma bela e triste metáfora em que estamos atolados...

Diz mais ou menos o seguinte:

Há 33 homens que estão presos numa caverna.
Isolados do mundo, a cerca de 700 metros da chamada superfície desse mundo.
- Porque foram eles para lá?
- Em trabalho (fixemos este ponto. #1):
São mineiros.

(Houve um desabamento e ficaram presos. Dia 5 de Agosto.)

Isto é o facto observável.
Puro e cruo, directo e rápido, esmagador e assustador.

Agora alguns não-factos (são infindáveis... a caixinha maravilhosa sabe inventar quantos quiser e pôr fantoches a representá-los para nós):

- Uma máquina, altamente sofisticada, que vem de muito longe, para perfurar a rocha e poder, assim, retirá-los de lá. A questão é que tal processo demorará "alguns" meses... A "opinião pública" (a dos urinóis...), ou a "Comunidade Internacional" (alguém sabe a que é que isto corresponde?) fica apreensiva, com um aperto na barriga, rezando pelos mineiros chilenos...
- Os pormenores técnicos (os diâmetros, o avanço diário... lento, demasiado lento... mas ainda há esperança... tudo depende de... os planos A, B e C...)
- Muitos jornalistas à superfície, para ir acompanhando e contando as novidades deste processo que "comove o mundo"...
- Um presidente que lê uma carta dos mineiros a uma familiar. "Qué bonito!"
- As primeiras imagens dos mineiros, transmitidas em todas as cadeias de televisão existentes e imaginárias.
- Análises médicas de psicólogos especializados em situações-limite (a desidratação e tal, a sanidade mental e tal...)
- Relatos de casos semelhantes ocorridos no passado, em reportagens fantásticas e esperançosas.
- Os mineiros a assistirem ao jogo da sua selecção nacional de futebol...
- Etc.
- Etc.
- Etc.
- Etc.
(etcéteras que continuam a fazer o espectáculo que esconde o vazio real com que nos inundam).


piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

(
- Mulher, acho que há qualquer falha na emissão...
- Então muda de canal, homem!
)



CHEGA!!!!!!!!!!!!!!!!

Pequenas questões que vamos agora colocar ao leitor que se encontra frente a este ecrã asséptico:

- Aceitaríamos / existem tais condições de trabalho nos nossos países ricos?

- Que seguro, que segurança nos poriam dentro da lei aceitável e humana dos nossos países "desenvolvidos", os "verdadeiros representantes do mundo livre e justo"?

- Quanto aceitaríamos proporcional (para quem ainda mede a vida em dinheiro) recebermos para brincarmos com a sempre possível morte?

- (questão essencial) Porque é que aqueles mineiros trabalham nas minas?

- Quanto recebem pelo seu trabalho?

- Em que consiste realmente o seu trabalho de mineiros? Qual o objecto do seu trabalho, que minério extraem eles?


Tentemos responder, tanto quanto sabemos ou julgamos, ou julgamos saber, a estas pequenas perguntas. Todos teremos as nossas respostas ou opiniões.

De uma coisa temos ideia: a de que o Chile é muito conhecido por ser um dos maiores (não sei, nem importa sequer saber, se é o maior...) "produtores" (como se um "país" fosse responsável pela produção de uma coisa que existe na natureza...) do minério de cobre.
Alvo de cobiça, importante sector da economia chilena. Por isso para lá foram muitas empresas alemãs (entre outras) no século passado.

Notar, segundo alguém nos diz pela Wikipédia, que é no Chile que está a maior mina a céu aberto, a maior ferida, portanto, que há neste planeta. Chama-se Chuquicamata. (curioso, "esqueceram-se" de mencionar um só minério que dela extraem...) "Parte fundamental da economia chilena"...

Aquela mina é explorada, ainda segundo a Wikipédia, por uma empresa chamada Anaconda Copper Company... Humm.. um nome em Inglês... que giro. Sempre à frente e virados para a internacionlização, estes chilenos...
- Ui, os Rotchild's e os Rockfeller's estão na história da empresa... que giro...
- Ei!, em 1971, Salvador Allende, retirou (vejam o termo usado: "confiscou") Chuquicamata à Anaconda Copper Company
mas...
- Uff!... após a "queda" de Allende, o Governo indemnizou a Anaconda em 250 milhões de dólares... que giro!!!!...

Por isso, o cobre é um ponto estratégico a controlar sempre pelos senhores do mundo, manietando sanguinários no poder político que num dia 11 de Setembro virou militar. E que vira o que eles quiserem - até democracia - , desde que este ponto estratégico continue nas mãos dos senhores do mundo.


E tudo isto porque...
O Chile é um país do terceiro mundo.


O primeiro mundo há-de continuar a manter países no terceiro mundo.
Para nesses países poder cometer todas as atrocidades,
todas as matanças,
todas as explorações,
todos os silenciamentos,
todos os atropelos aos direitos humanos,
todas as raízes, aí sustentáveis, que permitem o modo insustentável de funcionamento dos............. países ricos.

Há uma dualidade de critérios entre o aceitável e o inaceitável,
entre o justo e o injusto,
entre o humano e o desumano,
entre o democrático e o não-democrático
porque...
há dois mundos:
um de primeira classe
e
outro de classe inferior,
terceiro-mundista,
subalterno,
ao nosso dispor.


Mas por que raio precisa o primeiro mundo de cobre?

Ah, é um metal que resiste bem à corrosão.
Ah, é um metal usado em componentes eléctricos.
Ah!!! Ok....
POR ISSO é que o "terceiro mundo" não precisa dele,
por isso exporta-lo para nós, que precisamos dele, para os nossos computadores e as nossas máquinas e os nossos carrinhos, para a medicina e os medicamentos... etc, etc.
Ler mais sobre as suas aplicações, por exemplo, aqui.)



O mundo assiste,
"Não é nada comigo, não é nada comigo..."
sereno, mas solidário,
inactivo, mas responsável,
a mais uma tragédia que acontece...
no mundo.

Estamos a falar de economia.
De trabalho e de produção.
De consumo cego e irresponsável,
do sistema que põe uma venda negra sobre a origem daquilo que está,
ALI MESMO,
a ser consumido.

Estamos a falar da deslocalização das empresas e da externalização das consequências,
que não podem acontecer no nosso mundo. Por isso, que aconteçam bem longe, tão longe, tão longe, num lugar irreal, irrealizado, irrealizável pela abordagem mediática que é tudo tão sereno, tão saudável, tão risonho e sem dor, que é num mundo que não existe, não é nosso, não existe.

Em última análise, aqueles homens, presos na caverna, isolados do mundo (quem sabe se alguma vez verão a luz do sol), são.... uma criação, uma invenção da fábrica de fantasias que é a televisão.

Em última análise, aqueles homens... não existem.
Nunca existiram.
Nunca existirão.

Em última análise,
Em verdade,
aqueles homens...

Somos nós.

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