Alegoria do Património, por Françoise Choay (2/3)
“A indústria
patrimonial aperfeiçoou os procedimentos de embalagem que permitem entregar,
também eles, os centros e bairros antigos, prestes ao consumo cultural. Estados
e municipalidades recorrem-lhe, com reserva e discrição, ou liberalmente, em
função das suas escolhas sociais e políticas mas, sobretudo de acordo com a
natureza (dimensões, carácter, recursos) do produto a lançar e de acordo com a
importância relativa das receitas adiantadas. Um arsenal de dispositivos
testados permite atrair os amadores, retê-los, organizar a economia do seu
tempo, desviá-los para a familiaridade e o conforto: sistemas gráficos de
sinalização e de orientação; estereótipos do pitoresco urbano: passeios
públicos, pracetas, ruas, passagens de peões, pavimentos ou lajes à antiga,
equipados com mobiliários industriais padronizados (candelabros, bancos,
caixotes do lixo, telefones públicos) em estilo retro ou não, são animados, de acordo com o espaço disponível, com
esculturas contemporâneas, fontes, vasos de flores rústicos e arbustos
internacionais. Estereótipos do lazer urbano: cafés ao ar livre com mobiliários
adequados, tendas de artesanato, galerias de arte, lojas de bugigangas e ainda,
sempre, por todo o lado, sob todas as suas formas, regional, exótica,
industrial, o restaurante.” (pp.239-240)
(continuação da primeira parte)
É precisamente esta revolução urbanística parida com
essoutra, a industrial, que vai “aprimorar” o culto do património. Não podemos
deixar de citar como já Gustavo Giovannoni prenunciava a evolução das cidades.
Se a cidade do futuro será a da “comunicação generalizada”, em movimento,
Giovannoni pergunta-se:
“Não é já
possível imaginar o «fim do grande desenvolvimento urbano» e mesmo uma
verdadeira «anti-urbanização»? (o termo transformar-se-á mais tarde em
desurbanização). Quase em primeiro lugar, ele compreende o estiolamento e a
desintegração da cidade, em proveito de uma urbanização generalizada e difusa.
Com cinquenta anos de avanço, ele vê iniciar-se a nova era a que Melvin Weber
chamará the post-city age, «a era
pós-cidades»” (p.208)
O advento das indústrias culturais é vórtice que engole tudo
o que, sendo cultura, possa ser transformado em produto, objecto de consumo:
“(…) os monumentos e o património
históricos adquirem um duplo estatuto. São obras que facultam saber e prazer,
colocadas à disposição de todos, mas também produtos culturais, fabricados,
embalados e difundidos tendo em vista o seu consumo. A metamorfose do seu valor
de utilização em valor económico é realizada graças à «engenharia cultural»,
vasta empresa pública e privada, ao serviço da qual trabalha uma multidão de
animadores, comunicadores, agentes de desenvolvimento, engenheiros, mediadores
culturais. A sua tarefa consiste em explorar os monumentos por todos os meios
possíveis, a fim de multiplicar
indefinidamente o número de visitantes.” (pp. 225-6)
Para isso, várias técnicas e estratagemas são usados. A
autora identifica os mais amplamente usados:
- encenação (a
criação de ambientes místicos, com recurso aos meios audiovisuais: iluminação e
som, por exemplo),
- animação (“Uma hierarquia complexa conduza da mediação
por via dos efeitos especiais aos comentários audiovisuais, passando pela
reconstituição de cenas históricas imaginárias com a ajuda de actores,
manequins, marionetas ou imagens de síntese. (…) Levada aos seus limites, a animação torna-se no reverso exacto da
encenação do monumento que ela transforma em teatro ou em cena. O edifício
entra em concorrência com um espectáculo ou um «acontecimento» que lhe é
imposto, na sua autonomia. Exposições, concertos, óperas, representações
dramáticas, desfiles de moda são associados a um património que os valoriza e
que eles podem, por seu lado, no final dessa estranha relação antagónica,
potenciar ainda, depreciar ou reduzir a nada” (pp. 231-2),
- modernização (“a inserção do presente no passado”, como
é o exemplo simples e típico “das portas
de vidro que, nos grandes monumentos franceses, substituem muitas vezes as
antigas portas cheias de desprezo pela sua função arquitectónica.”,
- rentabilização (“denominador comum de todas as modalidades de
valorização, ela vai do aluguer dos monumentos à sua utilização enquanto
suporte publicitário, associando-os à venda de produtos de consumo corrente.
Qualquer monumento tem agora por complemento a sua loja, herdeira dos balcões
de livros e de postais do século XIX, que debita recordações diversas,
vestimentas, objectos domésticos ou produtos alimentares.”,
e
- entrega (“O monumento deve ser entregue à mão, o mais
perto possível dos veículos, privados ou colectivos, que exigem a organização
de parques de estacionamento e dos seus complementos.” (p. 233)
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