Sinfonia Surreal em construção
"Devem ser treinados para a violência
e não para o apaziguamento."
Junte-se
a indignação daquela septuagenária
com
o grito de Raimon,
uns olhos de Llach,
aquele sorriso e a Crucificação de Ochs,
as mãos (desfeitas...) de Jara,
os óculos de Lennon
e a voz de King...
Primeiro andamento:
- Eu tive um sonho
Há uma barreira que nos separa,
entre os que estamos deste lado e os que estais desse lado.
E chove muito.
Os vendedores da fruta estão indignados.
Talvez discutam para perceber o porquê de os preços que os produtores recebem serem tão baixos.
Talvez exijam melhores salários.
E se nós e os produtores recebêssemos mais que esta miséria?
Para onde vai o dinheiro que nós não recebemos, que nós nunca recebemos?
Para quem...?
Um desses vendedores, irado, de vassoura em riste, escorraça-me dali pra fora, como quem quer varrer o chão.
Não, amigo - pensei -, tu não estás a perceber.
Eu nem pude manifestar a minha posição.
Eu não estou contra ti.
Fujo, deixando-os para trás.
Chove muito
e trepo até um lugar mais ermo,
protegido
e mais só comigo,
mas completamente encharcado pela chuva que cai.
Descemos a Avenida da Liberdade.
Sim, pelo meio da estrada: não há mais carros - o trânsito somos nós.
Os prédios à nossa volta esmagam-nos.
Grito para trás,
para as janelas fechadas e vazias,
"Temos de sair prà rua,
juntos,
muitos,
quantos mais melhor."
[Porque levo isto, vivo, revivo, na memória que nunca me deixam morrer:
Dás-te conta, companheiro,
que pouco a pouco nos vão pondo o futuro
atrás das costas;
Dás-te conta, amigo.
Dás-te conta, companheiro,
que no-lo vão roubando cada dia que passa;
Dás-te conta, amigo.
Dás-te conta, companheiro,
que há já muitos anos
que nos escondem a história
e nos dizem que não a temos;
que a nossa é deles;dás-te conta, amigo.
Dás-te conta, companheiro
que agora querem o futuro
pouco a pouco, dia a dia, noite a noite;
dás-te conta, amigo.
Dás-te conta, companheiro,
não querem argumentos,
usam a força,
dás-te conta, amigo.
Dás-te conta, companheiro,
que temos de sair à rua,
juntos, muitos, quantos mais melhor,
se não queremos perder tudo,
dás-te conta, amigo
Dás-te conta, companheiro,
Dás-te conta, amigo?
]
Ao fundo da avenida, há uns degraus para uma piscina gigante
À chuva e ao frio, desobedecemos à razoabilidade:
alguns mergulham na água gelada, rindo.
Vêde! Temos sede de infinito!
Não tememos a morte.
A vida não é um crime.
Saímos da redoma,
saímos do cubículo
[era uma universidade, ou uma escola...] em que estamos a pensar.
Queremos ir ver o parlamento.
Não temos pé-de-cabra.
Umas mãos surgem na esquina e nos dão uma chave-mestra.
Porque há amigos que, caladamente, já sabem que isto não vai dar a lado nenhum.
Que daqui não saímos.
Subimos as escadas para o parlamento
e reparamos que está convertido numa sala de jogo,
em cuja sala principal mais parece um casino...
Vejo um compartimento que me interessa mais que as peças que se ganham e perdem:
uma sala com música.
Mas os discos que têm e temos para ouvir e recriar são de outras canções,
que nada nos dizem.
Ah, como nos faltam canções do agora...
Eu vi-te, miúdo.
Vi como tu és pequeno - tão pequeno...! - e enfrentaste os cassetetes dos fardados.
És a força da vida.
A morte que te deterá é parcial.
Porque em ti, a luta continua.
Para além de ti.
E eu ergo-te no ar e abraço-te.
Tu fumas, em sinal de desobediência à vida que te quer matar.
Segundo andamento:
- Eu tenho um sonho
Hoje acordei com o coração a bater.
Eu vi-te, miúdo.
Vi como tu és pequeno - tão pequeno...! - e enfrentaste os cassetetes dos fardados.
És a força da vida.
A morte que te deterá é parcial.
Porque em ti, a luta continua.
Para além de ti.
E eu ergo-te no ar e abraço-te.
Tu fumas, em sinal de desobediência à vida que te quer matar.
São estes os que assassinam - Martin Luther King
Segundo andamento:
- Eu tenho um sonho
Hoje acordei com o coração a bater.
Hoje voltei a sentir que tenho um coração a bater.
Aos polícias que ao silêncio pesado e aos corpos em festa respondem com violência:
Podeis espancar-nos.
Podemos sangrar muito.
Podemos morrer de tanto sangrar...
Eu tenho um sonho.
E no dia em que fores ao supermercado,
para alimentares a tua familiazinha,
o vendedor da caixa
vai recusar-se a passar a fruta que queres comer, invocando:
- Tu espancaste um amigo meu.
Nesse mesmo momento, o responsável, o capataz do supermercado, virá.
E o vendedor será suprimido e apagado dos registos.
Dos registos do supermercado.
Menos um.
Sim, menos um.
("Se me falares de destruição, não contes comigo.")
Será substituído por outro.
Mas nada mais mudou.
E as condições que produziram a objecção de consciência continuam a produzir vítimas.
Vivências e sentimentos de raiva.
Contra.
Da próxima vez, tu, polícia, político, empresário, bancário, bolsista, porco capitalista
vais dirigir-te a um supermercado e vais ter de enfrentar - adivinha! - um "colaborador".
Que vai dizer-te, baixinho:
- Tu espancaste um familiar meu.
E da próxima vez,
seremos mais,
ouvirás, sem to dizerem,
eu conheço o sujeito que tem aquele hematoma
- fui responsável por ele
(Oh yeah! A man's got a do what a man's got a do... e tretas do género
dirty work... dirty job...
- Ganho a vida a espalhar a morte...
E da próxima vez,
seremos mais ainda,
verás um familiar teu num hematoma...
E então, tu, polícia, já cansado, vais propor, lá na tua esquadra, a produção de fruta só para vós.
Para não terdes de enfrentar o mundo fora de horas.
Fora do horário de expediente.
"Somos pessoas", querereis argumentar.
Sereis? - perguntamos.
O que faz uma pessoa ser uma pessoa
senão a relação com os outros?
O que faz um humano ser humano
senão ser humano para com os outros?
E aí estaremos já a ganhar.
E aí estarás a caminhar rumo à independência.
Rumo a nós.
Calada e inconscientemente a ti próprio.
Tu não poderás viver cá fora.
Serás privado do contacto com as pessoas e o quotidiano.
Viverás entre os polícias e perderás, de vez, aquilo que te faz ser um homem entre os homens.
Estarás prestes a tornar-te numa máquina quando te perguntares:
- Mas que sentido é que isto faz?
Porquê tanta divisão?
Porque é que estou a afastar-me do mundo?
O que é que eu estou a servir?
Se não sou eu quem sai beneficiado com o que faço,
para que estou eu a fazer isto?
Sou polícia de quem?
Quem é que eu sirvo?
Para que é que eu sirvo?
Terceiro andamento:
- Eu tenho uma distopia*
O polícia não veste a farda: a farda veste o polícia.
O polícia não tem a arma: a arma tem o polícia.
O polícia é uma máquina.
E as máquinas são sempre telecomandadas.
E o investimento em segurança será reforçado.
- a segurança deles
eles,
os poderosos do poder de Estado,
do poder da finança,
da bolsa,
das grandes potências
e do dinheiro,
eles,
que têm a terra para produzir as coisas deles,
que têm as sementes que se lançam na terra que é deles,
que têm os "colaboradores" que as lançam na terra, que é deles,
que têm os mercados onde vender a sua fruta,
que têm os meios de distribuir a fruta, que é deles e que usam para reforçar o poder que têm,
que têm os combustíveis para os carros distribuírem a fruta deles
para eles...
eles,
que se servem de nós há séculos
via formas e exercícios do poder
para aumentarem
perpetuarem
e transmitirem
o seu poder
e a sua falta de valores,
eles
investirão e aumentarão a vigilância
"contra o poder legítimo e democrático".
E nós,
nas nossas praças e outros lugares onde não temos tecto nem onde cair mortos,
nós,
gota a gota (negada e poluída),
grão a grão (ogêémanipulado),
bala a bala (perdida),
tiro a tiro (mal dirigido),
guerra a guerra (sempre "inevitável" e sempre disseminada como qualquer das outras doenças fabricadas em laboratório... que também é deles)
then,
nós,
"crucificados",
seremos assassinados.
Como já o fomos e temos sido desde há séculos.
Mas a história continuará.
Mesmo que continue a não ser a nossa.
Porque ninguém vai sair daqui.
E nós não vamos parar.
O mundo é a nossa praça.
E a vida não é um crime.
Os grandes revolucionários não são os que pegam em armas.
Mas sim aqueles que pensam e sonham a vida e o amor dos homens.
Para a vida e o amor dos homens.
Nós estamos deste lado.
Escolhe o teu.
* - não, não confundas "distopia" com "miopia".
Face ao momento histórico a que chegámos,
concluamos uma coisa muito simples:
numa crise ecológica, social e biológica sem precedentes,
ou ultrapassaremos juntos isto
ou não ultrapassaremos isto.
Todos.
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