Dinheiro honesto
Não sei se entre os caros habituais leitores do Georden se encontram ex- ou ainda actuais leitores de banda desenhada da Disney. Bem, quem isto escreve pertence ao grupo dos que foram (e já não são).
E a propósito deste pequeno texto lembrei-me de uma história dessas, em que a figura principal era um dos Metralhas. Tomado por uma espécie de cegueira (para desenfastiar; e para mostrar aos pequenos de que lado está o bem e o mal) que nos leva a desviar-nos do normal caminho, um dos Metralhas foi interpelado por um miúdo (um patinho...) a pedir dinheiro para um fim caridoso. E o Metralha lá lhe deu, com todo o desafogo do momento, a notinha (verde, como se ainda estivesse coberta de clorofila...).
O miúdo então logo lhe perguntou:
- Sr. Este dinheiro é dinheiro honesto?
É que se não for, não quero.
A memória não é a que sempre desejamos quando a invocamos, por isso já não me lembro do que o ladrão disse. Mas voltou a ficar com a nota e prometeu a si mesmo que iria resolver aquela situação.
Ponto.
Cada nota ou moeda devia conter um chip com todo o seu currículo. Já temos uns carolas que se dedicam a detectar as notas de euro pelo mundo. E isso é um bom começo para percebermos em que mãos anda o dinheiro que nos chega às mãos.
Mas o dinheiro é dos objectos mais despersonalizados que existem. Isto, apesar do número de série de cada nota, que a torna única (sem falar das falsas, claro).
Diz-se que o dinheiro faz o mundo girar. Mas é o mundo humano, relembremo-lo. Porque o mundo gira sem haver dinheiro (pareceu-nos bem ir ao bê-á-bá da coisa...). E é por isso que se sucedem os dias e as noites num dado lugar. Em ciclos mais ou menos longos e dependendo da região, da inclinação do eixo terrestre e da época do ano (que é, por conseguinte, consequência destas alterações astronómicas. E não o contrário...).
O dinheiro é o motor deste mundo que criámos e vamos destruindo.
Como peças do mercado, a maquinação do mundo que só não nos esmaga para a mantermos a funcionar, damos atenção ao que imediatamente se nos segue. É por esse motivo que tanto nos fascinamos e cegamos com as luzes publicitárias; é por esse motivo que compramos lixo (sim, vimos bater sempre na mesma tecla, porque o mercado é o cerne da questão) sem ter noção disso. Sem termos noção do lixo, pois importa-nos o que vem dentro do lixo. E as embalagens, por assim dizer (quando não a totalidade do que compramos), são os "danos colaterais" do fantástico e existencializador acto de comprar.
Viramos a cara aos enormes buracos que deformam serras e montanhas do nosso país?
Em busca do granito para as bancas das nossas cozinhas, e da sílica para o cimento das nossas vivendas, cada vez maiores...
Viramos a cara à desflorestação das regiões equatoriais?
Porque adoramos aquele móvel fantástico feito de madeira tropical, raríssima, valiosíssima...
Aprendemos a viver a vida que o mercado nos destinou.
O dinheiro sujo, já se sabe, basta ir parar a pessoas honestas, e torna-se dinheiro honesto, por um qualquer toque de Midas que torna a criação semelhante ao criador.
É daí que vem a expressão "lavagem de dinheiro". Todas as máculas e cadastro que lhes ficariam a pesar no currículo, de repente, soltam-se, ganham asas e voam para o buraco do esquecimento.
O petróleo; a escravatura sexual, laboral, infantil; as armas, importante sector produtivo de vários países (como a Espanha, a França, os EUA... "se eles são bons, nós também podemos - se a produção de armas cria postos de trabalho, isso é bom. Se a matança de uns permite a sobrevivência de outros, isso é bom. Tudo depende de que lado estão uns e outros. Nós, somos os honestos. Matai-vos uns aos outros, que - QUANTA ARROGÂNCIA! - não temos nada a ver com isso: sois livres e povos soberanos e não vamos imiscuir-nos na vossa vida"); o desordenamento, as indústrias poluidoras do ar, da terra, da água, a energia nuclear e os seus imortais e mortíferos resíduos radioactivos...
Quanta vergonha! E pensar que são as mãos dos homens, honestos, que mexem nisso tudo.
O direito de expressão e a liberdade de informação são para não encher as panelas de pressão que somos em potencial para rebentar com isto tudo. Criar um mundo novo. Onde o consumismo seja consciente e não tenhamos vergonha (só falaremos verdadeiramente de vergonha quando houver consciência) daquilo que usamos, daquilo que compramos, daquilo que desperdiçamos, daquilo que queremos comprar.
O meu telemóvel, o meu ordenador portátil, o meu sistema de alta-fidelidade, o meu aipode... fontes de liberdade pessoal, esquecida a liberdade colectiva... remetidos a um canto, onde não incomodemos nem nos incomodemos com o canto em que nos pusemos...
Guerras, matanças e atrocidades da mais infindável imaginação não passam de notícias de telejornal. Nos países dos homens honestos.
Nos países dos homens honestos, os mesmos homens-palhaços que saem sempre pela porta dos fundos, carregados com a massa e as matérias-primas para irem fazer o seu negócio, justo e honesto... rasto de destruição nas suas costas... atravessadas as fronteiras da barbárie física e militar, não se pensa mais nisso... o que passou, passou. Vamos lá vender. Ninguém distingue duas notas de mesmo valor. Como as paredes, não podem falar.
- Sabeis por que eu já passei? - perguntar-nos-ia essa nota.
- Quanto sangue, quantos mortos, quantos deslocados, quantos refugiados estão dentro desta nota? - perguntar-nos-ia a nossa consciência.
Os nossos aparelhos tecnológicos, que nos chegaram às mãos, são limpinhos. Vêm embalados e imaculados. De onde vêm as matérias-primas? Quem as transformou? De que forma foram tratados esses transformadores?
Os nossos aparelhos tecnológicos são como as paredes. E aqueles que no-los vendem não se chegarão à frente a falar por eles. Revelar essas respostas é mau para o negócio. E manter empregos é bom para a economia. Tudo a favor da economia, nada contra a economia. Para as casas dos consumidores, e em força!
Coitadinhos dos primatas da floresta congolesa. Com sorte, a BBC ainda consegue fazer mais uns documentários, antes que desapareçam. Com sorte, muitas ONG's têm mais argumentos para conseguir fundos para a protecção dos primatas da floresta congolesa. E para a criação de parques nacionais e reservas de protecção especial. E com sorte a UNESCO virá com as suas certificações e prémios. Para continuar a lutar por um mundo melhor. Até aí chega a sua mão. Interferir nas empresas sem rosto é que não. Isso, nunca! Cruzes, credo, que blasfémia.
Somos os justos e os honestos que financiamos a extracção do tântalo para os nossos portáteis, aipodes, aifais... a destruição dos habitats não passa de danos colaterais.
E a tudo isto se chama globalização da corrupção. Ou simplesmente o normal funcionamento do capitalismo.
Depois não nos venham perguntar se as notas são verdes.
E a propósito deste pequeno texto lembrei-me de uma história dessas, em que a figura principal era um dos Metralhas. Tomado por uma espécie de cegueira (para desenfastiar; e para mostrar aos pequenos de que lado está o bem e o mal) que nos leva a desviar-nos do normal caminho, um dos Metralhas foi interpelado por um miúdo (um patinho...) a pedir dinheiro para um fim caridoso. E o Metralha lá lhe deu, com todo o desafogo do momento, a notinha (verde, como se ainda estivesse coberta de clorofila...).
O miúdo então logo lhe perguntou:
- Sr. Este dinheiro é dinheiro honesto?
É que se não for, não quero.
A memória não é a que sempre desejamos quando a invocamos, por isso já não me lembro do que o ladrão disse. Mas voltou a ficar com a nota e prometeu a si mesmo que iria resolver aquela situação.
Ponto.
Cada nota ou moeda devia conter um chip com todo o seu currículo. Já temos uns carolas que se dedicam a detectar as notas de euro pelo mundo. E isso é um bom começo para percebermos em que mãos anda o dinheiro que nos chega às mãos.
Mas o dinheiro é dos objectos mais despersonalizados que existem. Isto, apesar do número de série de cada nota, que a torna única (sem falar das falsas, claro).
Diz-se que o dinheiro faz o mundo girar. Mas é o mundo humano, relembremo-lo. Porque o mundo gira sem haver dinheiro (pareceu-nos bem ir ao bê-á-bá da coisa...). E é por isso que se sucedem os dias e as noites num dado lugar. Em ciclos mais ou menos longos e dependendo da região, da inclinação do eixo terrestre e da época do ano (que é, por conseguinte, consequência destas alterações astronómicas. E não o contrário...).
O dinheiro é o motor deste mundo que criámos e vamos destruindo.
Como peças do mercado, a maquinação do mundo que só não nos esmaga para a mantermos a funcionar, damos atenção ao que imediatamente se nos segue. É por esse motivo que tanto nos fascinamos e cegamos com as luzes publicitárias; é por esse motivo que compramos lixo (sim, vimos bater sempre na mesma tecla, porque o mercado é o cerne da questão) sem ter noção disso. Sem termos noção do lixo, pois importa-nos o que vem dentro do lixo. E as embalagens, por assim dizer (quando não a totalidade do que compramos), são os "danos colaterais" do fantástico e existencializador acto de comprar.
Viramos a cara aos enormes buracos que deformam serras e montanhas do nosso país?
Em busca do granito para as bancas das nossas cozinhas, e da sílica para o cimento das nossas vivendas, cada vez maiores...
Viramos a cara à desflorestação das regiões equatoriais?
Porque adoramos aquele móvel fantástico feito de madeira tropical, raríssima, valiosíssima...
Aprendemos a viver a vida que o mercado nos destinou.
O dinheiro sujo, já se sabe, basta ir parar a pessoas honestas, e torna-se dinheiro honesto, por um qualquer toque de Midas que torna a criação semelhante ao criador.
É daí que vem a expressão "lavagem de dinheiro". Todas as máculas e cadastro que lhes ficariam a pesar no currículo, de repente, soltam-se, ganham asas e voam para o buraco do esquecimento.
O petróleo; a escravatura sexual, laboral, infantil; as armas, importante sector produtivo de vários países (como a Espanha, a França, os EUA... "se eles são bons, nós também podemos - se a produção de armas cria postos de trabalho, isso é bom. Se a matança de uns permite a sobrevivência de outros, isso é bom. Tudo depende de que lado estão uns e outros. Nós, somos os honestos. Matai-vos uns aos outros, que - QUANTA ARROGÂNCIA! - não temos nada a ver com isso: sois livres e povos soberanos e não vamos imiscuir-nos na vossa vida"); o desordenamento, as indústrias poluidoras do ar, da terra, da água, a energia nuclear e os seus imortais e mortíferos resíduos radioactivos...
Quanta vergonha! E pensar que são as mãos dos homens, honestos, que mexem nisso tudo.
O direito de expressão e a liberdade de informação são para não encher as panelas de pressão que somos em potencial para rebentar com isto tudo. Criar um mundo novo. Onde o consumismo seja consciente e não tenhamos vergonha (só falaremos verdadeiramente de vergonha quando houver consciência) daquilo que usamos, daquilo que compramos, daquilo que desperdiçamos, daquilo que queremos comprar.
O meu telemóvel, o meu ordenador portátil, o meu sistema de alta-fidelidade, o meu aipode... fontes de liberdade pessoal, esquecida a liberdade colectiva... remetidos a um canto, onde não incomodemos nem nos incomodemos com o canto em que nos pusemos...
Guerras, matanças e atrocidades da mais infindável imaginação não passam de notícias de telejornal. Nos países dos homens honestos.
Nos países dos homens honestos, os mesmos homens-palhaços que saem sempre pela porta dos fundos, carregados com a massa e as matérias-primas para irem fazer o seu negócio, justo e honesto... rasto de destruição nas suas costas... atravessadas as fronteiras da barbárie física e militar, não se pensa mais nisso... o que passou, passou. Vamos lá vender. Ninguém distingue duas notas de mesmo valor. Como as paredes, não podem falar.
- Sabeis por que eu já passei? - perguntar-nos-ia essa nota.
- Quanto sangue, quantos mortos, quantos deslocados, quantos refugiados estão dentro desta nota? - perguntar-nos-ia a nossa consciência.
Os nossos aparelhos tecnológicos, que nos chegaram às mãos, são limpinhos. Vêm embalados e imaculados. De onde vêm as matérias-primas? Quem as transformou? De que forma foram tratados esses transformadores?
Os nossos aparelhos tecnológicos são como as paredes. E aqueles que no-los vendem não se chegarão à frente a falar por eles. Revelar essas respostas é mau para o negócio. E manter empregos é bom para a economia. Tudo a favor da economia, nada contra a economia. Para as casas dos consumidores, e em força!
Coitadinhos dos primatas da floresta congolesa. Com sorte, a BBC ainda consegue fazer mais uns documentários, antes que desapareçam. Com sorte, muitas ONG's têm mais argumentos para conseguir fundos para a protecção dos primatas da floresta congolesa. E para a criação de parques nacionais e reservas de protecção especial. E com sorte a UNESCO virá com as suas certificações e prémios. Para continuar a lutar por um mundo melhor. Até aí chega a sua mão. Interferir nas empresas sem rosto é que não. Isso, nunca! Cruzes, credo, que blasfémia.
Somos os justos e os honestos que financiamos a extracção do tântalo para os nossos portáteis, aipodes, aifais... a destruição dos habitats não passa de danos colaterais.
E a tudo isto se chama globalização da corrupção. Ou simplesmente o normal funcionamento do capitalismo.
Depois não nos venham perguntar se as notas são verdes.
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