Como construir / destruir uma sociedade

Ciclos viciosos num sistema de reprodução diária e chocantemente absurdo como o da acumulação da riqueza são dos pratos que temos de comer.

O sociólogo diria, para nos calar, que
"Tudo tem que ver com tudo"
e daí não sairia nada, que é como quem diz, na gíria popular
"Muita parra, pouca uva".

Este breve pensamento anárquico começa com as razões que levam os populações a fixarem-se num dado espaço (ora aqui está a disciplina - a biogeografia ou a geografia - numa das suas questões basilares).

Sim, há as razões históricas que todos evocam. Mas convém desmontar este item, vazio se tomado só por si. A História é o pano de fundo: são os outros factores que a explicam e lhe dão sentido. Depois, sim, a História já pode condicionar - e não pode deixar de fazê-lo - a própria História.

Mas há, em primeiro lugar, os "suportes físicos": a geologia e o clima, que permitem os solos aráveis, e estes permitem, à custa de séculos de esforço pela sobrevivência, a comidinha que temos de ingerir para cá continuar.

Depois, assegurada a necessidade básica que é a alimentação, virá talvez uma panóplia de factores com os quais a sociedade É, e pelos quais se rege (ou devia). Como por exemplo as dependências mútuas entre as pessoas. A divisão do trabalho, dir-nos-ia quem anda mais por dentro, é o cimento dos laços sociais, da própria sociedade e do progresso, ou não, desta.

Assim, e começando pelo fim,

- o coveiro (e suas empresas) é necessário para que os vivos não se misturem com os mortos;
- o alfaiate, necessário para não andarmos ao frio a envergonhar a moral que construímos;
- o professor, para nos ensinar a aprender e a questionar os professores que nos ensinam sem nos fazer pensar;
- o construtor, para termos infra-estruturas que nos protejam das adversidades naturais (ai era para isso que se devia construir? Nos primeiros tempos, sim.);
...
- o comerciante, o grande cimentador (ou demolidor, se analisarmos a questão por outro prisma - aquele que nos conduz à razão última da acumulação do capital) para distribuir aos que não têm certos produtos, mas têm algo com o qual adquiri-lo. (Tomara que não fosse uma coisa tão desprovida de valor como o dinheiro... Porque utilidade, acabamos de relembrá-lo, tem... e demasiada!)

Falta uma profissão básica, não falta?
Sim, faltam imensas. Mas além desta que falta, não serão elas derivadas do desenvolvimento e da especialização da sociedade?

Essa profissão é a do médico. A Saúde, necessidade básica que antes ainda do estadunisticamente apelidado "Estado do bem-estar" se tentava administrar às pessoas. Isso de usar os corpos, vivos ou mortos, para fins medicinais e científicos, só deve ter "renascido", como prática industrial, aí nos fins da Idade Média (sei lá, que digo eu?). Depois é que lá se percebeu que, pronto, quem traz o dinheiro de volta ao dono são as pessoas e lá se convencionou que era dever dos Estados mantê-las vivas para assim irem consumindo. Nem que seja comprimidos para adiar a vinda da decisiva parca. (A indústria farmacêutica é bem lucrativa, di-lo-nos a bolsa de valores.)

Ora bem, o médico, o que faz?
Trata da saúde das pessoas. Resposta mais simples que esta não pode ser dada. E nem queremos ir por segundos sentidos.

E voltamos ao início. Onde estão os médicos? Numa aldeia ideal, em que houvesse solidariedade, como nos filmes quando acontece algo que intervala ou desestabiliza o funcionamento de um organismo, sempre saltaria de uma fila ou de um magote de pessoas alguém a dizer
"Eu sou médico".

E nessa "aldeia ideal" haveria sempre um médico para valer às pessoas.
Logo, uma sociedade de "aldeias ideais" teria sempre um médico por perto (atente o leitor neste termo geográfico, em si relativo).
Portanto, a conclusão última deste raciocínio válido (mas não verdadeiro) é que onde há pessoas, há um médico. Faltaria calcular quantos médicos per capita haveria nessa "sociedade ideal".

Indo mais atrás. São do domínio público e do senso comum os contrastes deste país: não se trata só de meros antónimos (litoral-interior, norte-sul, cidade-campo...), que, como aludimos acima, podem posteriormente gerar mais desequilíbrios. As desigualdades existem realmente, e gritantes. Na população, na distribuição, nos recursos naturais e transformados, no rendimento per capita, na densidade de construção...

Há menos população nas montanhas. Há menos população nas zonas rurais. Há menos população onde não há solo arável (haverá? E então as cidades, verdadeiros desertos ocultos pelo alcatrão e o cimento? ah... pois... então há aqui alguma coisa que não bate certo...). Há, em suma, menos gente onde há menos gente.

"Como? Desculpe, não percebi. Podia repetir?"

O que queríamos dizer é que há menos possibilidade de vida social onde há menos interdependência entre as pessoas. Uma outra forma de dizer aquilo, rebuscando a historinha do professor, do coveiro, do agricultor, do alfaiate, do construtor... e do médico, não esqueçamos o médico.

Onde é que íamos?... Ah! Quantos médicos per capita é preciso haver na sociedade portuguesa? Isso é tarefa de estudiosos, especialistas e decisores com poder executivo. Mas não um poder executivo qualquer! É preciso que a lei que valha seja concordante com as necessidades que os estudos apurariam / apurarão. Senão, pouco nos vale algo que não nos ajuda. De uma coisa já sabemos: as estatísticas dizem-nos que estamos muito mal.

Não estamos a insinuar que há médicos a mais. Longe disso: (e vem sempre a bela frase que se segue) estão é mal distribuídos. Em questões de distribuição há várias formas de resolver o problema. Uma delas consiste em dividir um dado território em parcelas iguais. Geometrica e matematicamente falando, essas pequenas parcelas só podem ser quadrículas. Isto, obviamente, para abranger a totalidade do território. (Com círculos, ficavam muitos "cantinhos" de fora...). E, além do factor orográfico, que complica as contas, ainda temos de nos lembrar que, devido à irregularidade desse mesmo território (por causa dos recortes dos limites e das fronteiras), algumas regiões teriam que ficar com umas quadrículas um bocado esquisitas e nada parecidas com quadrados.
E também teríamos de decidir quanto de lado teria cada um desses quadrados.

Bem, esta era uma forma. Atribuir uma malha quadriculada ao país e fazer com que em cada quadrícula houvesse um x número de médicos.
Mas isto não podia ser assim. Pois haveria quadradinhos com mais pessoas que noutros, motivo do qual resultaria uma menor densidade de médicos por pessoa.

Há uma outra forma, muito usada em economia (a disciplina que não é ciência...), que se baseia no conceito de "raio de influência" ou "raio de acção". Aqui, a tal malha, mais condizente com a realidade, assumiria formas mais... "arredondadas": há um centro, prestador de serviços, de onde "saem" linhas rectas, "em busca" das pessoas que precisam ou das pessoas que deles podem usufruir.

Imagem retirada daqui

Num território orograficamente desigual e urbanisticamente desorganizado, as manchas encontradas seriam talvez parecidas com estrelas do mar (o centro corresponderia ao "coração" da estrela e as ramificações, gordas, à concentração das pessoas ao longo dos eixos viários... sei lá, digo eu!) Um maior raio de influência achado pesaria na escolha dos decisores.

Entre os tais decisores figuram sempre economistas. E quando se trata de instalar empresas, bem sabem eles se será rentável instalá-las naquele ou noutro sítio. Sim, muitas vezes os resultados são um desastre. Mas baseiam-se sempre na existência de consumidores. Logo, de mercado.

E aqui é que está o busílis da questão: duas concepções opostas sobre o que deve ser o Estado. Se o Estado age à maneira de empresas, que apenas se procupam com a sustentabilidade económica (e já nem falamos no lucro, que está acima disso), então não serve de nada. A palavra Estado, em regimes democráticos, tem de ser sinónima de "bem comum". E se a economia pesa mais que as pessoas isoladas que não têm sequer um médico de família, então esqueçamos esse "Estadozinho" que pretende representar-nos.

Como costuma acontecer (isto está tudo ligado, dizia o sociólogo, não é?), é em regiões com população envelhecida e longe dos centros (note uma vez mais o emprego destes termos geográficos), que falham serviços básicos de dependência de outrem. Como os da saúde. (Pesquise o leitor pelas palavras "sem médico de família", por exemplo, e verá quantos resultados se encontram escritos na rede). E muitos outros serviços, claro. Porque as pessoas "da terceira idade" figuram entre os mais pobres (como não produzem, e se não o tiverem acumulado, não têm dinheiro. Logo, não tendo dinheiro não atraem as empresas...).

Nessas regiões, talvez nem os coveiros se safem. Mas se não fizerem o seu trabalho, mais cedo precisarão do trabalhinho de um seu colega de profissão.

Sem funções sociais essenciais se vai erodindo e carcomendo, apodrecendo isso a que chamamos "sociedade".

Conjuguemos formas de administrar o território. Façamos o que fizermos, não nos esqueçamos NUNCA das pessoas. Onde houver pessoas temos de estar lá. Que não seja preciso fazer quilómetros e perder minutos vitais. E a Saúde como os transportes públicos, a Educação, e muitas outras necessidades humanas.

Vamos pensar nisto?
Ou já não podemos contar contigo, Estado,?

Comentários

Unknown disse…
Excelente texto. Realmente o grande desafio é pensar na "forma" e "função" para melhorar a distribuição de médicos num determinado território.
A estrela sem dúvida é a que aparentemente mais se aproxima dos objectivos.
Edward Soja disse…
Caro Luiz, obrigado pelo comentário.

A verdade é que não se me está a afigurar outra forma de distribuição que a "estrela". Posso estar a ver com pouco conhecimento, mas parece-me que não é a melhor forma.

Não está a funcionar dignamente, pois mais parece mais uma virtude do "deixa andar, que a economia trata disso", isto é, não pensado, apenas uma coisa que decorre naturalmente do CRESCIMENTO dos aglomerados populacionais.

As divisões administrativas e as sub-regiões de saúde... que critérios presidiram à formação destas últimas? Terá havido uma sobreposição e / ou coincidência entre as duas delimitações aquando da sua criação? Será que as condições mudaram e que necessitamos de novas sub-regiões de saúde?

Se a população tem vindo a concentrar-se nas zonas urbanas, quer isso dizer que TODAS as pessoas terão, para ter acesso à saúde, que fazer o mesmo? (Parece que é "ou mudas-te ou morres"...)

Depois chamam a essas zonas despovoadas de "regiões deprimidas"...

Enfim, de momento não tenho muitas luzes sobre este assunto...

Aceitam-se mais ideias.
Obrigado.

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