Os Jogos da Cabeça

Desde que vivo entre os homens, é sem dúvida o último dos meus cuidados que falte um olho a este, uma orelha àquele e uma perna a um terceiro, e que outros tenham perdido a língua ou o nariz ou a cabeça.

Vejo, e tenho visto, horrores piores, uns de que prefreriria não falar, e outros que nem sequer consigo calar; vi homens a quem tudo falta à excepção de um único membro demasiadamente desenvolvido, homens que apenas são um grande olho ou uma grande goela ou uma grande pança ou outra qualquer deformidade; a esses chamo enfermos às avessas.

Quando abandonei a minha solidão e, pela primeira vez, atravessei esta ponte, nem podia crer no que os meus olhos viam. Olhava de um lado, olhava de outro, e acabei por dizer: "Isto é uma orelha! Uma orelha tão grande como um homem!" Porém, olhando mais de perto, vi que sob a orelha se agitava outra coisa lastimosamente pequena, miserável e débil. E em verdade, a enorme orelha estava poisada sobre um caule fininho e curto, e esse caule era um homem! Com o auxílio de uma lente, podia-se mesmo distinguir um pequeno rosto invejoso e uma pequena alma empolada que pendiam da extremidade do caule. Contudo, o povo assegurou-me que aquela orelha não só era um homem, mas até um grande homem, um génio. Mas eu nunca acreditei no que o povo diz acerca dos grandes homens, e continuei a crer que se tratava de um enfermo às avessas, com muito pouco de tudo, e demasiado de uma coisa só."

"Da Redenção"
in Assim Falava Zaratustra, Friedrich Nietzsche*


A cabeça, a capital, o capital: três designações para uma mesma coisa: a acumulação: de decisões e ordens, de poder administrativo emanatório, de poder económico e seus correlativos sequazes e algozes. 

E vários aspectos atestam o carácter concentracionário da sociedade capitalista em que nos obrigam a sobreviver.

Com o encerramento de escolas e a consequente deslocação dos alunos para "novíssimos centros escolares". Gasta-se num lado para supostamente poupar noutro, se esse é o critério primeiro.
Com a extinção das freguesias e a deslocalização dos serviços (centros de dia, juntas, Gabinetes de Inserção Profissional...) para a freguesia mais rica ou mais povoada. Poupa-se imenso, e ficam imensas pessoas sem acesso. Mas isso é secundário. Essas passam a suportar os custos, que quem lhes disse que tinham direito?
Com o encerramento de hospitais.... (mais do mesmo...)

A regionalização falhou: dissemos não.
Teremos dito não à regionalização ou apenas às propostas das novas regiões com autonomia administrativa?

Uma ideia terá sido boa e posta em prática: as mui afamadas (bem ou mal, que decida cada um) Lojas do Cidadão. Pessoalmente, e entendendo que a forma como designamos o mundo traduz uma forma de o encarar, preferiria que o nome fosse "Espaço do Cidadão", varrendo à partida a índole comercial com que se apresenta. E que, em verdade, também contém.

Com a concentração (lá está a questão) de serviços num só espaço, poupa-se tempo de deslocações dos utentes, criam-se simbioses entre entidades (a recentemente falada intenção de se lhe juntar os centros de emprego seria extremamente positiva, dada a íntima relação destes com a Segurança Social...), facilita nos horários de funcionamento e, - factor que nos é caro - como a localização das Lojas sói ser no centro da vida das cidades e sedes de concelhos / distritos, cria afluência de pessoas e dinamiza essas mesmas zonas.

Em Braga, a deslocação do maior serviço de saúde para a periferia (uma espécie de ilha, que requer pagamento de passagem, com transporte e, na maioria dos casos, estacionamento... em suma, um negócio bem montado de raiz e com autores bem identificados) constituiu uma depressão imensa para o comércio (se querem usar o factor capital como argumento, usemo-lo então!) local. Atente-se no próximo Centro Comercial dos Granjinhos e no (já antes vazio?) São Lázaro. Quem conheceu as duas fases saberá identificar nitidamente muitas diferenças.

A autonomia das autarquias é coisa que sempre fica no papel.
A pensar nas más práticas empregues pelos diferentes caciques, será que vale mais o prejuízo (vulgo roubo e atropelos) estar distribuído pelo país, ou, maior, estar concentrado na capital?
Isto é inquinar a questão, já vos entrevemos a apontar a muleta, seus acusadores hílaros.
Era só uma questão.
Falcatruas e moscambilhas tanto as há no poder central como no poder local.
Além disso, quando as coisas dão "mesmo" prò torto ainda dá para ir apanhar um sol e perder uns quilitos na choldra. Pois então, porque não?

Quando o que se pretende sempre - e com tantas negociatas e novelas de permeio até nos esquecemos do essencial - é que as populações estejam mais bem servidas, que aquilo de que precisam funcione melhor e lhes esteja mais acessível.
O equilíbrio necessário, por achar, entre o poder e a proximidade vai no bom sentido (consoante os adeptos, entenda-se) quando se encara a política como o poder da proximidade e não como a concentração do poder.
Análise, aliás, muito fácil de fazer, se pensarmos um bocadinho. Daí o antagonismo entre uma ditadura (sob qualquer forma e por escudada por qualquer nome) e uma democracia verdadeiras.

A massa dos eleitores delega em alguns (Presidentes, Governos, Assembleias) o poder. Para que quando a democracia afinal não o era descobrirem que esses poucos decidem contra eles. Os traidores que devem ser punidos com bem mais que uma não-eleição. Com processos-crime, se assim se justificar. Sim, os casos podem justificá-lo. Se os interesses são tanto mais lesados. 
É isto que está em jogo nos jogos do poder.
As decisões afectam uns e outros, mais uns que outros e de maneira distinta uns e outros. Favorece uns, prejudica outros.

É a chamada Insegurança Social.
Quando esperamos uma coisa e não sabemos o que nos espera.


A bomba-notícia de encerrar o atendimento geral - de excelência (falo com conhecimento e também como parte interessada - já o explicitarei) - do serviço da Segurança Social na Loja do Cidadão de Braga é uma medida que está na sombra do conhecimento público. Isto é, à sombra e à revelia dos principais interessados na sua manutenção.

Assinem a petição contra esta decisão de um rei-iluminado clicando na imagem.
http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT73960


E esta intenção que ainda não é notícia, mas que estamos ajudar a denunciar, é contrária ao espírito democrático e, contrariamente ao que designa, descentralizador que levou à criação das Lojas do Cidadão pelo país fora.

A vontade não deriva do poder central da capital. Pelo menos, não directamente. Emana do capitão distrital da equipa. Supõe-se que com as directivas "europeias" do Governo português (serviços idênticos de outras lojas não parecem estar em causa), ávido de poupança (? já lá vamos) por trás. Isto não iliba, de maneira nenhuma, a correia de transmissão Rui Barreira, estratégica e coincidentemente colocada após a tomada de posse do presente Governo português: apenas se lhe soma, agravando a malfeitoria antidemocrática e já costumeira destes nossos supostos representantes contentinhamente eleitos.

O objectivo alegado é ter um mega-atendimento na sede distrital. 
A frase está mal-formulada.
Talvez pretenda ter um atendimento atulhado, ou seja, em quantidade, concentrado (lá está...). Um mega-atendimento (lá está) e não necessariamente um atendimento de excelência. Porque esse já os utentes o têm. Num lado e noutro.
A questão é a distribuição. Agora e sempre.
A da facilidade de acesso.
A da disponibilidade do horário: vai uma pessoa perder um dia de trabalho porque vai deixar de ter o sábado para tratar dos seus assuntos para com a Segurança Social? Ah, pode ir ao fim do trabalho. Errado. Vai deixar de poder. A sede fecha às 17h, a da Loja do Cidadão encerra às 20h. Pretendem mudar o horário da sede?

(esta é a minha parte de interessado. Serei o único?)

Não, não, calma, só vamos retirar o atendimento geral. A entrega de documentos permanece na Loja do Cidadão. 
Ai sim?, e o que leva tanta gente lá é a entrega de documentos? Não nos parece, e os números falam por si, somados de parcelas vindas de todo o distrito... (e este factor levar-nos-á a outro interessado). Conjuntamente, o Registo Civil, a EDP e a Segurança Social representam a razão de ser da Loja do Cidadão.)
Ficando esvaziada de sentido a mera entrega de documentos cedo se justificará - e bem! - a retirada da Segurança Social.
E aí é que está a jogada última, o objectivo último desta intenção.
A saída, definitiva, airosa, e a consequente poupança da renda.

E aqui entra o tal interessado.
O Governo português, se assim é do seu interesse, tem à sua disposição espaços e edifícios onde poderia não pagar rendas para os seus serviços.
No caso cá do burgo, foi uma jogada com o cacique local Rodrigues & Névoa. Os contribuintes pagam e não dão por nada.
Tomai, que é para terdes isto aqui à mão, acessível.
Não era isso que queríeis?

Se cai o pilar do tripé da Loja de Cidadão de Braga, isso não fará cair a cadeira? Necessariamente. Será uma questão de tempo.
A administração da Rodrigues & Névoa foi consultada para a tomada desta decisão? Não devia a empresa acautelar-se e impedir o que é bem provável?
Ora, é parte muito interessada. Que será daquele edifício, já de si quase vazio,?

Membros sem cabeça não fazem nada e uma cabeça que não é suportada pelos membros logo cai ao chão. 
Andar aos caídos é andar com uma cabeça que ninguém, nem nada suporta.
O divórcio entre as vontades de quem decide e quem mais é - negativamente - afectado pelas decisões tem de ter necessariamente consequências.

Estamos aqui, do lado da base, do lado dos membros desapossados, a corroborar a declaração de guerra.
Estes jogos da cabeça darão cabo da cabeça.
Mas parece que nenhuma das partes sairá ilesa...


"O povo assegurou-me que aquela orelha não só era um homem, mas até um grande homem, um génio. Mas eu nunca acreditei no que o povo diz acerca dos grandes homens, e continuei a crer que se tratava de um enfermo às avessas, com muito pouco de tudo, e demasiado de uma coisa só."



* Volto a insistir, prefiram a tradução de Carlos Grifo Babo e esqueçam as outras.

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