Ensaio: A GEOGRAFIA EM PORTUGAL

Não se pretende historiar o ensino e o desenvolvimento da ciência geográfica em Portugal. É por demais sabido o atraso e o tormento da sistematização da geografia no caso português que, aliás, esteve sempre na “roda” de outras ciências, a história e as ditas naturalistas, passando pelo paradigma regional. Não esquecemos, no entanto, a obra de Silva Teles (e seu papel na imposição da “ciência geográfica" na Universidade) e Orlando Ribeiro, para apenas referir dois, muito grandes.

Conheço muito bem, duas Universidades e respectivos cursos de geografia, mais ou menos técnicos, ou vocacionados para o ensino, Coimbra e Minho, por ordem cronológica. Menos bem, por colegas e influências, Porto e Nova de Lisboa. Dentro destes, não faço distinções semânticas, entre planeamento, ordenamento, ramo científico, ensino, etc. São cursos de ciência geográfica, de geografia e ponto final. Outra coisa será, sem desprimor, claro, a licenciatura em planeamento regional e urbano de Aveiro ou Engenharia geográfica.

Não obstante, as tentativas de distinção, e não me refiro a docentes, departamentos ou antiguidade e tradição (porque nestes, existem diferenças), esbarram numa génese comum e num substrato científico semelhante. Basicamente partimos dos mesmos paradigmas, discutimos o objecto, analisámos e racionalizamos em torno da dialéctica “física e Humana”, abordamos a evolução e a respectiva actualidade (?), esta num quadro ambíguo, visto o papel do geógrafo e da geografia colidirem com uma realidade absolutamente ignorante e imitativa, e por último, salvo as excepções do costume, avançamos muito pouco cientificamente, e perdemos o comboio da discussão teórica.

Castells escreveu em 1983 que o espaço não é um reflexo da sociedade, é a sociedade. Penso que Soja e Harvey concordaram à época, e todos os geógrafos hoje, de uma forma ou outra, partem desse “pressuposto”. Em Coimbra, nos anos 1990, a geografia ainda era abordada praticamente como seria nos idos 1960…em Portugal, claro. Com alterações óbvias, mas o método, a discussão, o estudo, tudo isso, era de ontem. Os próprios instrumentos e a ausência total de discussão teórica e abordagem social remetiam-nos para um mundo de mapas, história e o famoso trabalho inconsequente de campo. Não admira a opinião generalizada sobre a geografia se ela no seu (imposto) guetto partilha e realça (muitas vezes sem razão) esse trajecto mumificado.
Em Guimarães, mais tarde, a coisa era muito melhor, mas com a mesma base e dependência, embora com ritmos e expectativas diferentes. Chegávamos invariavelmente à famosa interdisciplinaridade! Mas mesmo esta era no papel, isto é, na relação (blá, blá) da geografia com outras ciências, a ciência “charneira”, o papel do geógrafo como mediador, etc, etc e tal. Na realidade a vida da Universidade, em princípio, era até contrária a isso. Explico.

Em Coimbra, nas “Letras” podemos frequentar (ou melhor, assistir porque não existe fiscalização e ninguém conhece ninguém), se quisermos, a outras aulas de outros cursos. Em Guimarães nem isso. Quando cheguei pensava que não, que existia um conjunto de temáticas e disciplinas paralelas, de forma a dar corpo a diferentes formações. Nada disto seria novo. Em Inglaterra, E.U.A, Alemanha e Áustria, por exemplo, qualquer formação inicial e complementar permite a diversificação de temáticas e estudos.

Não estou a referir-me a um conjunto de disciplinas, normalmente a partir do 3ºano, denominadas de OPÇÃO, que normalmente, ou por problemas burocráticos, ou entre departamentos, secções, tradição e outros, nem se realizam, ou se praticam por critérios de especialidade (Física ou geografia humana), em outros casos de complementaridade, mas poucos. Refiro-me a poder optar realmente, entre cadeiras do mesmo curso e de outros, mesmo sem qualquer ligação definida à partida. Parece que com BOLONHA a coisa vai!? Sabemos que dado o conservadorismo vigente e o facilitismo de docentes e alunos, a questão não vai evoluir, para, digamos, não complicar. Já para não falar da burocracia. Ora, este é o grande problema da geografia e do geógrafo. Deve evoluir, traçando o seu próprio caminho, definindo regras e etapas, comunicando e lendo outras matérias, observando, discutindo a base teórica e filosófica se o desejar, ou manuseando instrumentos e novas tecnologias directamente. Por isso, deve ser aberto a algumas disciplinas de história, filosofia, sociologia, mas também, porque não, engenharia e informática, arquitectura e turismo.

Hermínio Martins, conceituado Sociólogo, professor durante 40 anos em Oxford, Leeds e Essex com várias obras e ensaios publicados, quando na Pública de Domingo passado (11 FEV) o questionaram relativamente à sua formação e se não tinha ido para Inglaterra com o objectivo de estudar Economia, respondeu: A licenciatura que fiz era INTERDISCIPLINAR: baseava-se na ciência económica, mas era aberta às outras ciências sociais. Uma das minhas optativas foi a cadeira de lógica e Método cientifico, regida por Karl Popper. Podia-se fazer ciência política, ciência económica, história, sociologia, história do pensamento político (…) e filosofia da ciência (…). Curiosamente, nem acabou o Doutoramento, afirmando que há muitos sociólogos eminentes que não o fizeram e que na altura, na sua altura, só faziam o Doutoramento os mais fracos, Tinham de ter um grau académico para provar que de facto não eram fracos. Exactamente como cá!?....

Para a geografia não ser menosprezada e ninguém saber para o que serve, necessita ela própria de se respeitar e fazer-se respeitar. É todo um caminho, não obstante, se copiamos amorosamente tudo o que é mau vindo de fora porque não também uma ou outra coisita boa???

Comentários

NP disse…
Este é um daqueles assuntos que poderiamos debater horas e horas seguidas entre uns jarros no Pratas ou no Pinto, sem chegar a conclusões.
Apesar de ter gostado muito do texto todo, queria apenas comentar a parte com que mais me identifico, nomeadamente o quarto parágrafo.
Há dois ou três pontitos sobre os quais não concordo a 100%, nomeadamente quando refere que "Em Coimbra, nos anos 1990, a geografia ainda era abordada praticamente como seria nos idos 1960". Sobre isto, ainda muito recentemente em conversa regada a café com um ilustre geógrafo também conhecido como ex-reitor da UC, foi-me explicada a complicada teia pedagógica e social que orbitava à volta do curso nesses idos anos. Considero que, pelo que me foi dito, se verificaram evoluções muito positivas a vários níveis, mas também houve coisas que mudaram para pior... e continuam!
Falando objectivamente sobre os factores que refere, "método, a discussão, o estudo", estou em total desacordo consigo. Tenho tido a sorte de trabalhar com vários geógrafos e geógrafas doutorados que foram (e são) docentes na FLUC, e, tomando-os como exemplo, a ideia que tenho é completamente diferente. Tenho a certeza que os três factores que refere eram/são/serão diferentes... se para melhor, ou para pior, isso já é outra conversa (mais um jarrito!).
Da mesma forma forma, acho que a "abordagem social" que refere ser feita na altura, tem de ser entendida e enquadrada no contexto político-social da época. Hoje os tempos são outros!
Por outro lado, e para terminar, considero que o trabalho de campo é o verdadeiro centro nevrálgico da nossa ciência. Desde o 1º ano que ouvia dizer que o geógrafo pensa com os pés. O "famoso trabalho inconsequente de campo", como diz, complementa-nos, completa-nos, preenche-nos e justifica-nos.
Na minha opinião (é um facto que não ma pediu, mas vou tomar a liberdade de a dar na mesma), o trabalho inconsequente surgiu não nos anos 60, não nos anos 90, mas muito recentemente. Refiro-me ao geógrafo(a) que deixou de andar no terreno e de tentar perceber o que o espaço que o rodeia, substituindo isso pelo teclado e rato, tornando os SIG no santo graal da geografia. E para falarmos disto ia mais um jarrito e estava a tarde feita. Bons tempos!!!
Obrigado por me ter posto a falar destas coisas.
Desconhecia o GEORDEN, mas agora é certo que voltarei.
Cumprimentos geográficos,
NP

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