A Maninfestação


Eu, nos cartazes que marcam, para em frente do Palácio de Belém, um encontro entre o sr. Presidente da República e a maioria silenciosa, só adianto dúvidas a dois pontos.
Que seja a maioria.
Que seja silenciosa.
De resto, está tudo bem.
Ou quase. Na medida em que, sendo uma regra elementar da vida democrática, e da saúde moral, assumir as atitudes, um cartaz anónimo é uma ambiguidade.
De resto, está tudo bem.
Ou quase. Na medida em que, sendo uma regra elementar da colocação de cartazes numa sociedade democrática, e não só, a utilização da cola, um cartaz colado à ponta de pistola é uma originalidade.
De resto, está tudo bem.
Ou quase. Na medida em que, sendo uma regra elementar do cartazismo uma leitura a razoável distância, e só podendo ler-se esse cartaz à distância de um jornal, o cartaz é um amadorismo.
De resto, está tudo bem.
Ou quase.

É interessante saber que há, neste país, atrás de um cartaz, uma silenciosa maioria.
Até porque, não tendo ainda dito ninguém, nem o sr. Sottomayor Cardia, nem o sr. Manuel Alegria, nem o sr. Octávio Pato, nem o sr. Melo Antunes, que eram a maioria, é extremamente interessante saber que quem tem, consigo, a maioria, é o sr. Quito Hipólito Raposo.
O sr. Quito Hipólito Raposo.
É interessante saber que essa maioria é contra os extremismos mas é a favor do sr. Presidente da República.
Logo, a favor do Movimento das Forças Armadas.
Logo, a favor da democratização.
Logo, a favor do Governo Provisório.
Logo, a favor do sr. Vasco Gonçalves.
Logo, a favor do sr. Álvaro Cunhal.
Uma pergunta:
O sr. Quito Hipólito Raposo é, por acaso, comunista?

Qualquer cartaz pode dizer qualquer coisa.
Que a manifestação.
Que ao Presidente.
Que da República.
Que em Belém.
Que às tantas.
Que ao Caudilho.
Que de Espanha.
Que no Pardo.
Que às tantas.
Que à Rainha.
Que da Inglaterra.
Que em Buckingham.
Que às tantas.
O que um qualquer cartaz não pode dizer é que o papel é da maioria, a cola é silenciosa, a pistola é democrática, as letras são MFA, o boneco é do Quito.
E que o saldo é do sr. Presidente da República.
E isto porque a democracia não é exactamente um carnaval.
E isto porque, podendo, em democracia, qualquer cidadão produzir, e afixar, qualquer cartaz, deve esse cidadão obedecer às regras elementares que são: dizer a verdade, fazer a verdade, ser a verdade.
Onde está a prova de que o sr. Quito Hipólito Raposo tem, consigo, a maioria?
Como é que o sr. Quito Hipólito Raposo, que grita esta cartaz, prova que não grita, e que está silencioso?

O sr. Quito Hipólito Raposo é um fait-divers. Mesmo com cola, e pistola, e maioria, e silenciosa.
O que não é um fait-divers é que a reacção não desarma.
E que não se limita a atacar de fora para dentro mas de dentro para fora.
E que assume a maioria silenciosa.
E que crê dever usar o nome do sr. Presidente da República.
E que crê poder marcar, com o sr. Presidente da República, na Praça do Império, um encontro.
O que não pode ser um fait-divers é a reacção da democracia a esta manifestação.
O que não pode ser um fait-divers é a reacção do sr. Presidente da República a esta manifestação.

A maioria é uma coisa que está para ver nas próximas eleições.
Se é silenciosa ou não é uma coisa que está para ver nas próximas abstenções.
De resto, a democracia não proíbe a abstenção. Torna-a imoral. Pelo que a abstenção é, politicamente, a imoralidade.
Pelo que este cartaz é, talvez, prematuro. Quer dizer, não é.
Que a reacção pense poder usar o nome do sr. Presidente da República levanta alguma inquietação.
O sr. Presidente da República é, neste cartaz, a função ou o homem?
O sr. Presidente da República é, neste cartaz, um alibi ou uma ideologia?
O sr. Presidente da República é, neste cartaz, um desespero ou um investimento?
Claro que o sr. Presidente da República não tem nada a ver com este cartaz.
A não ser com o facto de este cartaz o citar.
A não ser com o facto de, havendo, neste país, algumas leis, e protegendo essas leis, da inverdade, e do ridículo, o Presidente da República, continuar colado, à esquina da Avenida António Augusto de Aguiar, e na base do monumento ao Marquês de Pombal, um cartaz que envolve o Presidente desta República na inverdade do ridículo e no ridículo da inverdade.
A não ser com o facto de, não havendo, contra este cartaz, uma acção clara, imediata, decidida, ninguém poder evitar, amanhã, que o sr. Elmano Alves mande colar, nas estradas deste país, um cartaz marcando encontro com o sr. Marcello Caetano, e São Bento, e que o sr. Henrique Tenreiro mande afixar um cartaz aprazando encontro com o sr. Américo Tomás, e que o sr. Paulo Rodrigues mande apor um cartaz preparando encontro com Oliveira Salazar, no Panteão.
O maior risco de uma democracia excessivamente permissiva não é tanto que os srs. Elmano Alves, Henrique Tenreiro e Paulo Rodrigues sejam autorizados a afixar encontros com os srs. Marcello Caetano, Américo Tomás e Oliveira Salazar, mas que, indo por eles os srs. Elmano Alves, Henrique Tenreiro e Paulo Rodrigues, encontrem, já realmente reinstalados em São Bento, em Belém, e no Panteão, os srs. Marcello Caetano, Américo Tomás e Oliveira Salazar.
Coisa que produziria, no Estádio Nacional, a mais gigantesca enchente de todos os tempos.
Não me refiro a um comício de protesto.
Refiro-me à conversão do Estádio Nacional, de todos os estádios deste país, em gigantescas prisões.
Pelo que é urgente que esta República defina, e faça funcionar, um aparelho legal que defenda, na guerra dos cartazes, as instituições democráticas e a dignidade do Presidente desta República, não apenas contra a agressão, mas também contra a hipocrisia.
Pelo que importa que o sr. Presidente da República desautorize, imediatamente, não apenas este cartaz, que é pobre, e mau, e mal, e frouxo, e rabo escondido com gato de fora, mas tudo quanto ameaça a democracia.
Isto é, a República.
Isto é, a Presidência da Democracia.
Isto é, a Presidência da República.

A democracia não é, só, a maioria, mas é, também, e sobretudo, a maioria.
A democracia não é, só, a voz da maioria, mas é, também, e sobretudo, a voz da maioria.
Uma democracia que seja a minoria, a voz da minoria, o silêncio, o silêncio da maioria, é uma democracia doente.
O cartaz do sr. Quito Hipólito Raposo é um cartaz doente.
Um que aviva, e promove, a doença.
O cartaz do sr. Quito Hipólito Raposo precisa de ser isolado.

A reacção só pode ser uma plasticidade.
Pelo que não é de estranhar que a antidemocracia apoie a democracia.
E que o sr. Álvaro Cunhal, uma destas manhãs, tenha, ao abrir a janela, na rua, o sr. Cazal Ribeiro gritando:
- Pê-Cê-Pê! Pê-Cê-Pê! Pê-Cê-Pê!
E que o sr. Raul Rêgo, uma tarde destas, tenha, à saída deste jornal, ao assestar, no crânio, a bóina basca, o sr. Barradas de Oliveira* berrando:
- Viva a "República". A voz do Povo é a voz do Rêgo!
E que o sr. Francisco Balsemão, uma destas madrugadas, tenha, à saída do "Caberetíssimo", o sr. Kaúlza de Arriaga soltando:
- Francisco, sentiúpe!
Mas se a reacção é uma plasticidade, a democracia tem de ser uma firmeza.
Pelo que é de estranhar que a democracia se deixa apoiar pela antidemocracia.
Porque, se todo o cidadão tem liberdade para apoiar a democracia, nenhum cidadão tem liberdade para se camuflar de democrata com o fim de assestar, na democracia, o seu golpe.

A democracia portuguesa não está feita.
Estamos a fazê-la.
A democracia não é um suicídio.
Tem de ser uma coerência.
A democracia é, simultaneamente, o ódio, e a oportunidade do fascismo.
Não porque a democracia queira ser, fundamentalmente, a oportunidade do fascismo, mas porque, para ser a oportunidade da liberdade, tem de ser a oportunidade de várias liberdades.
Mas não da liberdade de destruir a liberdade.
Mas não da liberdade de desacreditar a liberdade, parodiando-a, caricaturando-a, povoando-a de silêncio, de medo, de ódio.
Colando-a.
À piscola.

Artur Portela Filho, Setembro de 1974
(A Funda, 5º volume, pp. 175-182)

*
Barradas de Oliveira foi fundador do jornal "A Revolução".

Há sempre uma data no presente que nos faz esquecer uma data do passado.
O 28 de Setembro de 1974 será, hoje, esquecido por ser hoje o dia que se seguiu às eleições legislativas. De ontem.

Comentários

Mensagens populares