A Destruição da Pólis (Sociologia da Intimidade)

"A maioria das pessoas crê que as representações, ideias, sentimentos e conceitos saem do interior das suas cabeças. Ignora que percorrem, na realidade, o caminho inverso, de fora para dentro."


Longe estão os tempos e os lugares de rebentos numerosos. Tectos de abrigo para as confrontações dos iguais, em casas de muita discussão por um pedaço de pão.
E com razão.

Os ganhões encosta(va)m-se à parede da praça pública, como à espera do fuzilamento:
- Tu, tu, tu,... tu... (o matraquear dos senhores: cada bala mata o outro, o que fica) e tu. Os outros, toca a dispersar! (Lá vem o bastão, a acenar desde o fundo da história, transversal ao silêncio opressivo.)


"A simplificação da expressão pressupõe a simplificação dos processos mentais e dos conceitos."


Para lá da biologia, a visão instrumental: filhos como fonte de riqueza: mais mãos para trabalhar, para sustentar os tijolos de uma casa, projecto comum para a vida.
Um sentido para a roda do tempo:
1) Os mais novos, entregues aos mais velhos;
2) Os adultos, quando órfãos, privados dos laços mais fundos, agarram tudo o que restou, nos filhos que chegaram a ter;
3) Os novos velhos entregues aos novos adultos.
E um novo ciclo, uma nova geração, recomeçam: a permanência da vida.

(Emanações de pétalas ao vento, hoje sem ter onde cair... mortas.)


A Geografia da Saúde escreve-se aqui e agora noutras linhas, aos sobressaltos, em garatujos, projectos de caracteres:
A mulher entrou também para a trituradora do "mercado" de trabalho, o sítio sem lugar onde somos comprados por inteiro, que não podem esquartejar-nos para ficarem apenas com a gordura que produz a energia deles...
Acoplados a essa gordura estão... seres humanos.

"Também nós somos vida."
(canta Raimon)

("Eles não desistirão enquanto não nos destruírem completamente." - Brecht)

No primado da sociedade da manipulação, palavras meigas como manteiga, escorregadias e insípidas:
Aligeiram o sentido das coisas que nomeiam a realidade, até ao ponto em que não saibamos orientar-nos, tudo feito símbolos sob a cor da propaganda e da publicidade para o hiperconsumo.
A sociedade fragmentada, descontextualizada, sem hipótese de relacionarmos umas coisas com as outras e, possivelmente, extrairmos sentidos.
Instigando a divisão ("di"+"visão"), a confusão e a concorrência.


"Ao longo da História, a retórica da liberdade foi utilizada para justificar a repressão das liberdades."


A velha regra: dividir para reinar.


"Tal como quando a Igreja continua a dizer que toda a autoridade dimana de Deus, quando a verdade é que todo o Deus dimana da autoridade."


A velha regra: dividir para reinar.
- Como impedir a aglutinação se a maior parte dos seres humanos têm vindo a concentrar-se nas cidades?
Fazendo de cada um, dentre esses milhões, o seu próprio campo de concentração, em que todos têm motivos muito fortes para desconfiar de todos, na luta pela sobrevivência... do seu umbigo.
Um umbigo não é uma praça pública: é o domínio do privado.
- Como impedir o conhecimento se os grandes avanços da técnica disponibilizam a informação a cada vez mais e mais pessoas?
Fazendo dessa mesma informação uma doença, polida e despolitizada (mas o fim das ideologias é, ela própria, uma ideologia....!!) que "empate", distraia o pensamento, que emocione, para cima ou para baixo, os corações e extraia deles a capacidade de aprendizagem, (porque de) memória (porque tudo é fluído e excessivo) e lucidez (porque sobre-estimulante, logo adormecedor da nossa atenção: o mesmo mecanismo que, por contraste, nos impede de ver algum interesse na movimentação do que é demasiado lento, como por exemplo filmes que não sigam os cânones da Madeira Sagrada).


Assim, vidas fragmentadas esboroam projectos comuns, esboroam projectos ponto final parágrafo.
Apenas para continuarem a extorsão, para nos roubarem o mundo e as coisas que sempre nos têm negado.

O que é o ser humano?
O que é a sociedade?
Para que serve a sociedade?
Ao serviço de quê, ou de quem, está a sociedade e o ser humano?
Que projecto?
Que, ou quem, impõe, impôs, está a impor, decide, decidiu ou está a decidir, o projecto das sociedades humanas?


"Se os trabalhadores entregam continuamente mais trabalho do que aquele que consomem, deve ser possível seguir o rasto a esse excedente. Este "mais" tem de se encontrar em algum sítio, teve de ter-se materializado em saldo bancário, avião privado, nova fábrica, etc.
A distribuição da riqueza entre a população é o indicador que nos mostra para onde foram os valores produzidos pelos trabalhadores."


Vidas fragmentárias materializam, produzem espaços fragmentados, desconexos?

A Demografia do Tempo vê as gerações a reduzirem-se, a porem em causa a própria continuidade do tempo.

Pois, que condições nos dá este cenário para nos reproduzirmos em dignidade e liberdade?
Em dignidade e liberdade?
O cenário não é um adorno.
As palavras não podem continuar imaculadas, vazias, brancas, abstinentes e estéreis!


"Pela sua natureza, a técnica da informação simplifica a linguagem, inclusivamente até ao limite do sistema binário, o que facilita, enormemente, o transporte e reduz os gastos. Assim, aplica-se pois à vida quotidiana a linguagem estereotipada, imperativa, espartana, própria do meio militar. Trata-se de uma linguagem que exclui a dúvida, a interpretação. Porém, reprimir a dúvida e emprestar a certas palavras e frases um significado apriorístico é algo de muito natural quando se abandonou consciente ou inconscientemente o conhecimento da possibilidade ambígua, polissémica, da linguagem e do conhecimento."


Não responderemos com a violência, nem física, nem simbólica.
A violência contra o pensamento e o corpo é o que nos tem destruído por completo.


A actual Geografia da Saúde dos países capitalistas dá-nos a liberdade de escolher, como quem vai à feira (metáforas mercantis gritantemente entranhadas na linguagem), entre as doenças cárdio-vasculares, os cancros e as doenças de foro digestivo.
1) A tensão quotidiana, as pressões de ambientes malsãos, a caminho do trabalho, no trabalho e no caminho de retorno para sabemos cada vez menos onde. O tabaco e o fumo dos escapes, na rarefação dos espaços verdes públicos e privados.
2) O modo de vida sedentário, inflado, desequilibrado, da saúde publicada e da saúde privada. O contraste entre aquilo que propelam ser o bom e as condições que nos dão para o seguirmos e praticarmos.
3) O aperto da barriga, naquilo que comemos e digerimos, mal. A ansiedade daquilo que fazemos. Sobretudo naquilo que deixamos de fazer. Naquilo que não cumprimos, que não podemos cumprir, que não se concretiza, gerador de angústias e úlceras: podes fugir, mas não te podes esconder. Podes fugir, mas levarás sempre contigo a ferida que tens por dentro. O esquecimento ajuda. Mas como o esquecimento, se está dentro de nós, se somos nós mesmos? Uma ferida aberta.

Nós não esquecemos.

Nós jamais esqueceremos a nossa vida.


"O capitalismo, e ainda mais na sua actual fase imperialista, é, na sua essência, um sistema gerador de angústias, incertezas e medos. Sobretudo o medo de perder o emprego ou de não o encontrar, para poder aceder a uma vida digna."


Como quereis que tenhamos filhos?
COMO quereis que se propicie o amor?
Como amar em tempo de precariedade?
O amor é um projecto: requer tempo e investimento.
O amor não é uma pastilha elástica!

Na liquidez (Z. Bauman) da sociedade contemporânea, os vínculos são um despropósito. Mas... que segurança é que isso nos dá?
Empresas a soltar amarras e a deixarem vidas destruídas para trás, ou empresas a descartarem pessoas como números... pessoas reduzidas a números ou a nomes, como lixo.
Assim, face à instabilidade programada, que sentimento de segurança? De um e do outro lado, como nos diz Richard Sennett, "o medo de se tornar dependente de alguém é o fracasso da confiança nessa pessoa".

Onde está o tempo fora do lugar de trabalho?
Onde o tempo, fora do local de trabalho, que não ao serviço do trabalho?


A fragilidade, a liquidez, as pessoas como fantasmas, intocáveis, não palpáveis...
Perda das relações, no trabalho e fora do trabalho, nos trabalhos de que nos obrigam a saltar, quais sapos de nenúfar em nenúfar com moscas como prato diário...
Que tipo de relações temos criado (sob o primado do tempo economicista...)?
Solidões multimultiplicadas, solidões inúteis, nunca encontradas, nunca confrontadas nem anuladas, nem produtivas.

Onde a felicidade? A felicidade não é um projecto meramente individual.
Mas como a sociedade sem sequer a individualidade? (sem as partes se aborta o todo)
Onde o projecto, a tentativa, sequer, de um projecto de felicidade?


Cacofonias de Escher, sem princípio nem fim, balões a murchar, papel de parede a morrer, sombras do que somos, violentados simbólica e fisicamente. Na sociedade que tanto exige de nós, tantos apelos, tantas ordens, tanta m...., tanta prostituição em cada esquina que nos tornámos.
Somos o que se compra, o que se vende.
Descansamos oito horas para continuarmos na pele do trabalhador para um outro que desconhecemos. A sociedade cujo projecto desconhecemos, suposta construção para a qual não sentimos a nossa parte contributiva, perdida no além que nunca temos visto.

Que tem ela para nos dar?
Para quê esta sociedade?
Sociedade?
Porquê tanta divisão?
Tanta solidão...

O espaço público morreu: assassinámo-lo.
O espaço público, do confronto dialogante, onde possamos ouvir-nos, a nós, àquilo que temos e àquilo que somos, os nossos desejos mais íntimos, as nossas aspirações mais fundas.

Onde o amor?
Onde esse espaço onde podemos descansar a cabeça?
Como, esse lugar?

No meio de tanta separação dolorosa, quando vamos empreender a construção de um espaço vivo, revolucionário?
Contra o fim da história que estamos a ser, eternos presentes sem futuro nem passado, como poderemos, desinteressados (interesse: "inter"+"est", estar entre), desvinculados, atópicos, esvaziados de nós mesmos, apropriar-nos de algo que reclamemos:

ISTO É NOSSO! ISTO SOU EU E TU!
?

Em busca de um pedaço de vida. Uma vida dizível, sem manteiga, com as mãos abertas e calosas das feridas deste tempo de mentiras.
Onde, quando, como, porquê?

A primeira resposta, a partir da qual podemos começar por responder a todas as que se lhe seguem, está, ela própria, esquecida:

Pergunta: POR QUEM?
Resposta: POR NÓS.

O espaço público é a participação, a conjunção de esforços e das partes que somos.
Onde estamos nós no espaço?
No espaço privado.
Para servir quem?
A nós?
A sociedade é uma propriedade privada? Não me f.... o juízo! Isso não é a sociedade. Inventemos outra!

A simplificação é rentável, mas é um vazio que nos esvazia.
Vamos discutir. Vamos dialogar. Cara a cara!
Não somos televisões! Somos bem mais que papagaios do consumo.

Nós não vamos estar à venda para sempre.

Vamos empreender a afectividade, a amizade, vamos compreender que tudo pode ser a escola do humanismo. Contra a imbelicidade e a besta.
Por mais divisão a que qualquer sistema político-económico nos force, vamos recentrar-nos, vamos redescobrir-nos ("re"+"des"+"cobrir"+"nos") da poeira que nos atiram para os olhos,
vamos redefinir os conceitos essenciais, vamos discutir sobre este assunto!
Se o silêncio é sinónimo de ignorância, então é contra nós!
A vida não é sempre a perder!
A cidade não pode ser para sempre o lugar onde morremos todos os dias!

Vamos encontrar-nos.
Para podermos descobrir que... afinal, temos necessidades comuns, desejos comuns, aspirações nada conflituantes que justifiquem seja que guerra for.
Vamos empreendê-lo juntos!


Não queremos viver a medo.
QUEREMOS AFIRMAR O QUE SOMOS.
NÓS NÃO EXIGIMOS MENOS QUE A VIDA!


"É no debate e na troca, na dicção e na contradição que podemos descobrir que outros também pensam como nós e que temos os mesmos interesses."


Vamos empreendê-lo juntos!


"O ensino da solidariedade realiza-se a partir da coexistência, da horizontalidade, e não da verticalidade dos valores. O primeiro princípio de uma tal educação deveria ser o reconhecimento de que cada pessoa vê as coisas de uma maneira diferente. Reduzir a desigualdade significa, pois, desmontar a violência simbólica que se exerce sobre nós."

...


- Obrigado, capitalismo.
- Passe bem, e até breve.
Volte sempre.
-Voltarei.

(...voltarei, mas munido de poesia contra o inominável que és.

Só depois - perdida de vez a nossa inocência, como cantam os International Noise Conspiracy, "Capitalism stole my virginity!" -, só aí, utilizados todos os outros meios, sem obtenção de mudança, só aí voltaremos... com bombas.)




Queremos que Sociologia da Intimidade seja /
Cremos que a Sociologia da Intimidade é, afinal, radical (indo às raízes), a sociologia da emancipação colectiva. A Sociologia, ponto final parágrafo.



Quando não mencionadas, as citações em itálico são extraídas do livro A Intoxicação Linguística, de Vicente Romano, 2008, Ed. Deriva.

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