E no entanto ela move-se

Abalar - v. tr. fazer tremer; sacudir agitar; fig. fazer mudar de propósito; demover; impressionar; assustar; inquietar; intr. tremer; aluir; partir com pressa (Lat. advallare, de vallu e valle)
Dicionário da Língua Portuguesa, 5ª ed., Porto Editora*

Precisamos da luz para ver e dissociar as coisas.
Saber discernir, ter clarividência.
Acontecimentos súbitos, extraordinários, impactantes, retiram-nos frequentemente essas capacidades, com a emoção no lugar da consciência.

Aos países ou lugares pobres do mundo dizem que são atrasados.
Mas atrasados em quê?
No tempo? Como, se vivemos todos no Presente (não importam as convenções horárias)?
No espaço? Mas eu não vejo os países a recuar...
Sim, de vez em quando há por aí uns fenómenos, muito estranhos e que ainda não compreendemos muito bem, que deslocam a terra. Olhem por exemplo a falha de Santo André, uma falha transformante que é responsável pela deslocação das placas de uns míseros 33 a 37 milímetros por ano. Coisa pouca, claro está.
Ah, sim, também é verdade, não vamos escamotear os factos. É que a história sísmica da falha já teve umas deslocaçõezitas maiores, na ordem dos quilómetros. Como em 1906, em que foram apenas 477...
OK (não, porque morreram pessoas, pelo que a expressão "zero killed" não cabe aqui tão bem), mas os Estados Unidos continuam paradinhos no mesmo sítio!!

Ah, dizem que o termo "atrasado" se aplica ao desenvolvimento económico. E que umas nações ou regiões são então, relativamente atrasadas. Pela desigualdade, uns, mais à frente, vão mais à frente, simplesmente, porque outros ainda vêm lá atrás. Isto é tão giro!
Podíamos passar a vida nestes jogos de linguagem.

(a menina parece já estar a planear uma nova casa...)
Imagem retirada daqui

Há quem passe a vida a abalar de um lado para o outro, em busca de melhores condições. Económicas. Ou em fuga. Por exemplo de factores geográficos adversos.
E num tempo em que uma parcela cada vez mais substancial dos nossos telejornais é dedicada às notícias relacionadas com o ambiente, com a meteorologia, com catástrofes naturais, degelos, incêndios, derrocadas, secas (bem, as silenciosas secas e desertificações por essas regiões afora até nem são notícia por aí além, que de tão habituados à rapidez, não conseguimos distanciar-nos e ver a sua lentidão progressiva e assustadora), calcula-se para este ano em que estamos que os refugiados ambientais podem ascender aos 50 milhões de pessoas.
Mas que é isso, num mundo com com 7 biliões??
Uma gota no oceano. Salgada e intragável? Mas nós também precisamos de fugir da hipotensão...

Mas os refugiados ambientais, e os outros, que só querem é poder viver, propagar a espécie e deixar descendência (é este o sentido da vida? A avaliar pelo número acima tem sido, pelo menos, a
direcção da espécie humana), vão abalar para onde? Chegam a países que lhes "franqueiam as portas à chegada", que até os levam de volta, "back to where they belong!" (esta expressão soa bem mais arrogante em inglês, não acham?). Chegam a sítios onde estarão, mais cedo ou mais tarde, sujeitos a problemas semelhantes, sem acesso a água [Não posso deixar escapar esta: "É um triste reflexo da nossa sociedade que algo tão básico como a água potável seja, hoje em dia, um produto engarrafado e embalado. Discordo (PPC e PR). Concordo (AB)"**], a casa, novamente sem trabalho ou maneiras de sustentarem as suas vidas.

E isto
abala as consciências?
Faz-me lembrar aqueles que, como em Nápoles, vivem à sombra do Vesúvio. Sobre isto, a Viquipédia diz-nos assim
"
Com 1220 metros de altura, o Vesúvio não entra em erupção desde 1944. Em 1968, chegou a entrar em actividade, mas não expeliu lava. A suspeita levantada por especialistas diz que se ele entrar em actividade novamente mataria milhões de pessoas em apenas alguns minutos."
Mas será que as pessoas deixam de viver ali, à sombra do monstro?
Claro que não.
Para depois os sobreviventes (dali ou doutros lados) poderem chorar e escarnecer das audiências dos telejornais com o sofrimento alheio e com a perseguição a presumíveis responsáveis, alibis e bodes-expiatórios.
...

O maior abalo sísmico do Haiti, no passado dia 12 de Janeiro, foi de 7 graus na escala de Richter (pelos estragos, qual terá sido a de Mercalli?) teve o hipocentro a 13 quilómetros de profundidade e epicentro a escassos quilómetros da capital, Port-au-Prince, que se viu, assim, arrasada.
Num dos dias subsequentes, julgo ter ouvido pelas notícias que o Presidente do país (ou terá sido o Primeiro-Ministro? Bem, esta não é a questão essencial) tenciona
(cito de memória) planear a cidade, distribuindo os seus habitantes pelo resto do país, numa zona menos susceptível. Para evitar tanta concentração populacional.

...

Terei ouvido bem??
Mas este senhor anda a sonhar ou quê? Aonde raios foi ele desenterrar uma ideia destas? Por favor, alguém que explique a este senhor que as coisas não funcionam assim nos países pobres. E ele que retire já o que disse, para não dar maus exemplos ao resto do mundo...

Adiante.
Perdoemos este lapsus linguae e concentremo-nos em questões mais importantes.

Ah... pois...
(que mania de a Terra andar sempre a distrair-nos da nossa vidinha...)
outro abalo destruidor, agora na Turquia, no passado dia 8, atingiu os 5,9 na escala de Richter e teve epicentro em
Basyurt-Karakocan.
E leio na Visão de ontem, 11 de Março, que o Primeiro-Ministro turco anunciou, aliás, uma revisão das políticas de construção na área.

Mas quê? Outro iluminado??? Mas que raio se anda a passar com estas criaturas?
É inadmissível. E o culpado disto só pode ter sido o senhor haitiano que proferiu aquela barbaridade acima... Rais' partam os meios de comunicação, que andam a espalhar ideias perigosas...

...

Claro, nesta enxurrada de desastres naturais (originalmente naturais, amplificados depois pela existência de seres que os sofrem. Daí o conceito de "risco ambiental", pois, e citando Fernando Rebelo, "a noção de risco sem vulnerabilidade nem sequer é considerada por grande parte dos autores que se debruçam sobre esta temática." (Rebelo, p. 252)***), não podemos esquecer-nos do que aconteceu na Madeira, e cuja fotografia do mês nos deixa sem palavras.


João Jardim, uma mente muito mais capaz, modesta e senhora de si, refractária a emoções e mortos, não se deixa abalar (e também não abala) e diz que voltará a construir tudo no mesmo sítio. Isto, sim, já é mais consentâneo com os nossos hábitos de país atrasado.

Uma citação engraçada, de mais um desses fundamentalistas reza assim:

Como foi possível construir em leito de cheia e em locais de risco de derrocadas sem violar as directivas europeias?
Muitas das obras de canalização das ribeiras foram feitas em pleno Terceiro Quadro Comunitário de Apoio (com o apoio do Feder - Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional) e ao abrigo dos programas de defesa do Ambiente. Algumas dessas obras foram bem feitas, foram importantes para defender localidades, tanto no Funchal como fora do Funchal.

Mas outras não. As obras foram autorizadas e financiadas e passaram no Tribunal de Contas e tudo foi feito de forma legal. Mas possivelmente o conceito de leito de cheia varia consoante os técnicos que dão os pareceres. E sabe bem que os estudos de impacto ambiental são encomendados pelos promotores das obras, é assim em todo o país...

Retirado daqui.

O tempo é de reconstrução. E se a destruição é sempre uma perda, a reconstrução, assim, à nossa maneira pequenina de ser, parece soar a uma grande festa.

"Em 1999, quando o povo timorense estava a ser massacrado pelas milícias indonésias, criou-se uma onde de solidariedade a favor de Timor-Leste. Nessa altura, o presidente do GR da Madeira negou-se a ofertar qualquer verba, admoestando até o governo de Guterres. Hoje, porque o povo da Madeira necessita de ajuda, Timor-Leste resolveu contribuir com 550 mil euros. Porque os seus dirigentes sabem o que é a solidariedade. E os madeirenses merecem, apesar dos seus dirigentes."
Ramiro Rio Novo (Correio do Leitor, na mesma Visão, p.12)


A vida é o que se move e altera.
E mesmo as pedras mais duras, antigas e de alho-chocho transformar-se-ão um dia, erodidas, esmagadas ou liquefeitas pelas forças da Natureza.
Se calhar, o tarde ou o cedo é que definem, por sua vez e humanamente, uma sociedade atrasada.
Em que o nosso corpo vai todo inclinado e todo futurista, precipitado, agora mais rapidamente, para o abismo, mas em que a nossa cabeça parece ter ficado ali algures atrás da Revolução Industrial e das suas consequências ambiental, urbanística, demográfica e economicamente perversas...

E, no fim, o suicídio vai abalar quem?


* Este dicionário, velhinho, cujo ano de edição desconheço (mas anterior a 1970), foi impresso na Rua da Fábrica, no Porto. Hoje, ao passarmos por lá, é como ignorarmos a História, indiferentes somos às ruínas dos edifícios em pé.
** PPC, PR e AB são as iniciais, respectivamente, de Pedro Passos Coelho, Paulo Rangel e Aguiar Branco. A citação refere-se a um teste feito a pessoas para avaliar o seu posicionamento no espectro político. Vem na Visão de ontem, p.54)
*** REBELO, Fernando (2003) - Riscos Naturais e Acção Antrópica - Estudos e Reflexões, 2ª Ed. Revista e Aumentada, Imprensa da Universidade de Coimbra, 286 pp.
Imagem do sismo na Turquia retirada daqui.
Imagem de João Jardim retirada daqui.

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