Estes estranhos nomes... (I)

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Foto: António J. M. Correia

Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por exemplo. Há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide. Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu. Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia.
Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide. Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço. Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola. Para não falar na Cova da Piedade, no Fogueteiro e na Cruz de Pau.

Um dos mais notáveis documentos da nossa cultura é o Dicionário Corográfico de Portugal, de A.C. Amaral Frazão (Domingos Bandeira, Porto, I981). Contém cerca de 1000 nomes de lugares, aldeias, vilas e cidades portuguesas. Ao ler os nomes de alguns sítios, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na CEE. De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses. Imagine-se o impacte de dizer «Eu sou da Margalha» (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente «E a menina, de onde é?», e a menina diz: «Eu sou da Fonte da Rata» (Espinho). E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando «E onde mora, presentemente?», só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).
É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro? Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda. Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Tarouca, de uma Vergadelas?

É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma de «terra». Ninguém é do Porto ou de Lisboa. Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.
Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro),
É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros («I am from the Fountain of Drink and Go Away...»).

Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa (Torres Vedras). Verá que não é bem atendido. Toda a gente levará a mal o passageiro que provier de um A-do-Cavalo (Trancoso) ou de um A dos Caos (Sintra), que nem sequer é capaz de ser A dos Cães, só para embirrar e soar mal. Como se isto não bastasse, há muitos compatriotas nossos que nasceram com o handicap de serem de A do Barbas (Leiria) ou de A de Loucos (Vila Franca de Xira). E injusto. E é muito pouco europeu.

Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima. Fica perto da aldeola de Sacripanta, e da lendária vila Sacana (estes dois últimos são mentira). Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros. Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo Não sei, A Mousse é Caseira, ou Vai Mais um Rissol.
É certo que já há algumas terrinhas com nomes pós-modernos. Há s terras chamadas Formal, onde toda a gente anda de smoking e lê os formalistas russos — uma em Ovar, outra em Vila Nova de Gaia e uma em Espinho. Há, nas Caldas da Rainha, um moderníssimo Imaginário, terra natal de muitos dos nossos grandes intelectuais sem imaginação nenhuma. Existe uma Invenções (concelho de Resende). No concelho de Santana, lá está uma Diferença. Há, em Vila Nova de Ourém, uma Memória. Imagine-se só o que um poeta rasca era capaz de fazer com esta informação (exemplo de um primeiro verso: «Lembro-me da Memória como se inda ontem lá estivesse...»). Para os nossos cineastas e encenadores há uma terra santa, um Jerusalém dos Subsídios, que se chama Verba (em Aveiro). Há uma aldeia ultramoderna que até se refere a si mesma - chama-se Própria (concelho da Feira). Por último, como convém, só há uma Verdade — a de Melgaço, e mais nenhuma.

Há dois casos do mais puro e acintoso dadaísmo. Como se não fosse já difícil suportar a vergonha de haver um Isqueiro no mapa, Portugal tem logo quatro. Quatro Isqueiros! Dois em Barcelos e dois em Caminha. Ou seja, quatro isqueiros todos juntinhos uns aos outros, criando a grande confusão nos turistas e demais excursionistas da Ronson, e isto sem um único Fósforo no resto do país.

No que toca à Política, nota-se que a Esquerda não vai bem. Só existe um Cunhal, no concelho de Alvaiázere. (Onde é que fica Alvaiázere, por amor de Deus?) Constâncio, não há. Há uma Constância e um Constance, o que não é a mesma coisa. Eanes também não há, isto apesar de um Martinho e de dois Medeiros, nos concelhos de Castelo de Vide, de Montalegre e de Vila Nova de Gaia, respectivamente. A Direita, em gloriosa contrapartida, arranca logo com uma dúzia inteira de Moreiras, 7 Freitas, 3 Cavacos e 1 Pires. Quanto ao presidente da República, não se registam, infelizmente, Mários nem Soares. O que há é uma Mariola de Cima, em Monchique, e um fabuloso Maroques, em Tavira. Toda a Campanha presidencial esperei ver o cabeçalho “Mário conquista Maroques” ou “Freitas visita Freitas, Freitas, Freitas, Freitas e Freitas”. Mas em vão.
Na política internacional, deve haver mouro na costa porque apesar de uma Espanha (Lousada) e de uma França (Bragança) e de um Brasil (Barcelos), e na ausência vergonhosa de uma Inglaterra, de uns Estados Unidos da América, de uma Argentina e de uma Suécia, há nada mais nada menos que cinco Marrocos! Só nos apazigua o facto de haver uma terreola no concelho de Tábua chamada Meda de Mouros ou, como se diz maliciosamente em Tábua, deixando cair os érres, a Meda de Mouos.

Depois, há um monte melhor do que a Montanha Mágica de Mann, onde se concentram todos os heroinómanos deste país - é o Monte das Picadurinhas, no concelho de Iaméu (não é nada, é no de Ourique). Não fica muito longe de outro notório hippy - o Monte da Má Coisa, em Montemor-o-Novo. Aliás, no capítulo psicadélico, o lugar mais estranho deve ser Helenos ou Raso (Pombal). Diz um frique ao outro: “Vamos fumar uma broca a Helenos ou Raso?”. O outro, zonzo de droga, pensa um bocadinho e responde: “A Raso”. O primeiro, aturdido de estúpido, não compreende e indaga: “Mas arrasas o quê, meu?”.


Este é o primeiro extracto de uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, "Nomes da nossa terra que urgiria esquecer", publicada em data não referida (mas Mário Soares era presidente, na altura, e - parece - Vítor Constâncio era de esquerda...) e vem incluído na compilação "Explicações de Português", 2ª ed - Novembro de 2001, Assírio & Alvim, pp. 231-241.
Achei que valia a pena partilhá-la com todos os que nos visitam. A não perder os próximos "estratos".

Comentários

Anónimo disse…
E já agora:

Picha e Venda da Gaita, concelho Pedrogão Grande
Vaginha, concelho de Pombal
Edward Soja disse…
Esqueci-me de mencionar, para os que desconhecem, que Colo do Pito (pelo menos, este) fica no concelho de Castro Daire.

:)
Vidal disse…
acrescento outros: Isqueiros em Vila Verde e o mais fabuloso, Panque, em Barcelos: onde nasceu o Panque Roque.
Edward Soja disse…
Ahah, "panque roque"!
Anónimo disse…
Cossourado, Alheira, Lama...
Tudo em Barcelos.

:D
Edward Soja disse…
Não há dúvida que esta é uma terra em riqueza de língua!
Até se dá ao trabalho de a fixar em nomes de terras...

:)

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